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O jazz é uma música que resulta de uma tensão cultural entre a memória ancestral de uma música remota e do encontro entre os detentores dessa memória, os negros americanos e alguns dos intrumentos musicais provenientes da cultura europeia: guitarras, pianos, trompetes, clarinetes depois saxofones, contrabaixos… Os músicos negros apropriam-se desses instrumentos mas transformam-nos, dobram-nos, obrigam-nos a soarem de forma diferente, para além da afinação do temperamento igual. Da mesma forma e com pragmatismo, os músicos do jazz nascente inventaram um instrumento; a bateria é a reunião de diversos instrumentos de percussão da orquestra numa nova disposição espacial que permite o seu uso simultâneo por um só músico.
Em 1991 escrevi no artigo Con(di)vergências na revista Artes e Letras da Fundação Calouste Gunbenkian: “Convém fazer aqui um parêntesis para dizer que o jazz sempre foi uma música permeável. A sua própria origem se confunde com o fenómeno mais vasto da aculturação dos negros americanos face à cultura branca anglo-saxónica dominante, uma espécie de conúbio entre a memória da música africana, com as suas escalas pentatónicas não-temperadas, e a realidade concreta dos instrumentos ocidentais, temperados. A blue note não é mais do que o esforço do músico negro americano para “dobrar” o instrumento aos seus hábitos auditivos ancestrais. A imagem do guitarrista de blues esticando a corda para obter uma nota entre o mi natural e o mi bemol é exemplar. Além disso, o processo de aprendizagem, de transmissão da herança do passado, foi no séc. XX simultaneamente oral e tecnológico, isto é, processou-se através de um meio tecnologicamente sofisticado: o gira-discos! Charlie Parker trazia consigo sempre discos de Lester Young, que ouvia permanentemente. A aprendizagem verificava- se desta forma sui generis face à música erudita europeia: por cima da escrita!”
Alguém perguntou a um músico de jazz quantas horas é que estudava por dia. A resposta terá sido: “Man, I don’t practice, I play!” Para além da boutade evidente, está nesta resposta toda uma concepção da música e de um modo de vida. Os músicos de jazz, antes de mais nada, tocam. Nesse sentido, é quase irrelevante qual é o tema, qual é a song, sobre a qual improvisam à sua maneira. Mantendo esta perspectiva como pano de fundo nessa medida um standard não se compõe enquanto tal. Em muitos casos, foram músicas compostas para os teatros da Broadway, eram canções, com música e letra, destinadas a espectáculos específicos. Tornaramse standards por terem sido posteriormente adaptados pelos músicos de jazz para as suas interpretações e recriações infindáveis.
Dois casos merecem referência especial. Autumn Leaves, de Kosma-Prévert, originalmente uma canção francesa (Feuilles Mortes), transformou-se num standard obrigatório e Mercy, Mercy, Mercy, do austríaco Joe Zawinul, figura ímpar dos músicos europeus tornadosmúsicos- de-jazz.
Se do ponto de vista da estrutura harmónica os blues são todos iguais, é óbvio que não é nesse aspecto que reside a invenção específica de cada um. Quem não reconhece uma poderosa individualidade em C-Jam blues ou em Blue monk? Isto significa que mesmo os territórios aparentemente mais elementares podem ser terreno onde lavra a criatividade. O erro de Adorno nas suas críticas ao jazz afirmando que esta música do ponto de vista harmónico não ultrapassava Brahms — o que poderia ser verdade nos anos 30, mas nem aí — foi tomar como olhar analítico objectivo o seu próprio mundo musical o que não passava de uma miopia eurocêntrica, incapaz de apreender a especificidade deste “outro”. (...)
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