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O que são os blues?
O termo – que nunca deve ser traduzido por “azuis” – designa basicamente três coisas:
1. Um sentimento, ou um estado de alma, identificado com a tristeza, a melancolia, o desgosto. Há testemunho literário da expressão “blue devils”, usada na língua inglesa, desde o séc. XVI, com este sentido depressivo; na América do Norte, no séc. XIX, “a fit of blues” significava, à letra, um “ataque” ou uma crise de tristeza. Mas quando o negro americano canta “I am blue”, ou “I’ve got the blues”, a expressão tem um sentido muito mais forte, e quer dizer uma pesada amargura, feita de desamparo e desesperança, que pode levar à fuga, ao suicídio... ou à música, como único alívio acessível. Charlotte Forten, uma jovem negra livre, professora, vinda do Norte para ensinar a ler os escravos de Edisto Island (South Carolina), deixou no seu diário (publicado com o título A Free Negro in a Slave Era) este relato, em 14 de Dezembro de 1862: “Eu mal tinha dormido dez minutos quando fui acordada pelo que me pareciam gritos terríveis, vindos dos pavilhões” (dos escravos). Aquele som continuou a atormentá-la na manhã do dia seguinte, domingo. No regresso da igreja, como conta “... cheguei a casa com os blues, atirei-me para cima da cama e, pela primeira vez desde que estou aqui, senti-me profundamente só e desgraçada”.
2. Um género musical e poético desenvolvido pelos negros da América do Norte, a partir de finais do séc. XIX. Os blues são uma arte declarativa, confessional; o cantor de blues começa por ser um poeta espontâneo, que nos fala de si, do que lhe aconteceu, do que lhe fizeram. Filho de escravos, camponês pobre sujeito às violências da segregação racial, mais tarde “emigrante” desenraizado nas cidades industriais do Norte, nunca lhe faltou matéria para esta poética baseada na sinceridade: a fome (do pão ou dos afectos), a solidão, a distância, o amor traído. O primeiro berço dos blues foi a vasta planície do Delta, alagada pelos rios Mississípi e Yazoo, onde a população negra constituía uma maioria oprimida. Dessa terra fértil partiram para o Norte, por Memphis e St. Louis, até Chicago e Detroit, mais tarde New York – a mesma estrada seguida depois pelo jazz, desde New Orleans. Os blues devem ser considerados um dos principais afluentes do grande rio do jazz, mas também é possível observar o seu desenvolvimento paralelo. O jazz herdou dos blues a tonalidade, algumas estruturas de composição e grande parte do seu repertório fundador. Os blues receberam do jazz uma riqueza de interpretação e uma abundância de meios que não estavam ao alcance dos primeiros cantores solitários.
3. Uma tonalidade característica, marcada por aquilo a que se passou a chamar as blue notes. Os primeiros musicólogos a tentar transcrever o modo de cantar dos negros americanos confessaram a sua perplexidade perante a escala tonal utilizada, que não se ajustava à que traziam da Europa. Várias “explicações” foram tentadas, incluindo a de que os negros, por falta de cultura, simplesmente não “acertavam” nas notas correctas. É hoje consensual reconhecer que os escravos, provenientes da costa ocidental africana, apesar da dispersão das famílias e de uma inculturação forçada, guardaram a memória de uma outra gama tonal, não coincidente com o “cravo bem temperado” de J.S. Bach. Se as dispuséssemos numa folha de papel veríamos que há pontos de coincidência mais difícil, sobretudo nas notas de terceiro e sétimo grau, que tendem a “bemolizar”. E seria possível acrescentar a estas duas uma terceira blue note, no quinto grau. (...)
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