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Escrever algo de novo sobre Miles Davis não é tarefa fácil. Miles é indiscutivelmente uma das figuras mais importantes da história do trompete, do jazz e da música em geral, e, como tal, já muito se escreveu sobre ele, a sua vida e obra. A mim, como trompetista, apetece-me antes desfazer alguns dos mitos que se criaram à volta de Miles: “Miles Davis não tinha técnica” e “Miles Davis tocava simples e com poucas notas”.
Toda a minha vida fui confrontado com as minhas limitações técnicas de um lado e com pessoas do outro a dizer “mas o Miles não tinha técnica e tocava como tocava”. Duma vez por todas, o Miles tem muita técnica, é verdadeiramente um virtuoso! Mas não é tecnicamente exuberante, e a sua técnica imensa consegue passar desapercebida a um ouvido menos atento. A sua grande maturidade musical também contribui para que a sua técnica não sobressaia, quando toca. Miles tem sempre presente as prioridades e a profundidade musical vem para ele acima de tudo. A sua técnica é um meio e não um fim (desculpem- me o cliché).
Mas onde está então essa técnica desmedida? Em primeiro lugar, no seu som. Na qualidade do seu som e na consistência tímbrica a toda a extensão do seu registo. Qualidade de som é técnica, consistência em todo o registo é virtuosismo técnico. Miles é de facto dos poucos trompetistas a conseguir o seu som escuro no registo grave, médio, agudo e superagudo. Dizzy Gillespie é famoso pelo seu Sol agudo, capaz de encher uma sala a um volume ensurdecedor. Miles toca o mesmo Sol agudo frequentemente e chega mesmo a um Lá agudo na famosa versão de “My Funny Valentine” (Four & More, 1964, Columbia). No entanto, ninguém diria que se trata de uma nota tão aguda. Porquê? Porque o seu timbre é escuro e igual ao do seu registo médio. De certa forma, parece que Miles está a tocar num registo médio. Grande virtuosismo técnico a passar desapercebido ao ouvinte.
Miles é possivelmente o único trompetista da história a conseguir fazer o registo superagudo soar como registo médio, sempre escuro, redondo e agradável.
O segundo mito é talvez mais difícil de desfazer. “Miles Davis tocava simples e com poucas notas.” Miles não tocava simples nem com poucas notas, sobretudo se considerarmos a carga musical que cada nota das que Miles toca contém. Usando uma analogia barata e um pouco de aritmética simples, é fácil entender que uma nota de 500 euros vale dez vezes mais do que dez notas de cinco euros...
Mas se o que Miles faz não é simples, como pode ser que pareça tão simples? Aqui a questão é um pouco mais delicada. Depois de introduzida a técnica de análise de Schenker (um musicólogo austríaco do começo do século XX), ficou claro que a música é entendida e processada pelo ouvinte em diferentes níveis de entendimento, e tudo acontece em simultâneo. Correndo o risco de simplificar demasiado os conceitos envolvidos, o que acontece é que num primeiro nível de entendimento ouvimos aquilo que está a ser tocado a cada momento: cada tempo, cada nota, cada acorde. Simultaneamente, num segundo nível de entendimento, o ouvinte vai juntando as peças do que já ouviu e do que está a ouvir, podendo assim tirar o sentido daquilo que ouve. Tempos agrupam-se em compassos e compassos em secções, surgindo então a noção de estrutura de um tema. Notas agrupam-se em frases formando o sentido melódico e acordes agrupam-se para dar a orientação dos movimentos harmónicos. É relacionando o que se ouve nos diferentes níveis de entendimento que se compreende emocionalmente a música. Tudo isto acontece intuitiva e naturalmente em qualquer ouvinte, por mais leigo que seja. (...)
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