O jornalista não é um mensageiro
As fontes e o sigilo profissional, a responsabilização
do jornal e do jornalista prendem-se com critérios e técnicas
específicas adoptados no PÚBLICO. Mas são fundamentalmente
questões de princípio, ética e deontologia
profissional.
1. O valor de uma fonte de informação
a. Fonte, no sentido restrito do termo, é todo
aquele que fornece informações ao jornal, por iniciativa
própria ou solicitado nesse sentido. Uma fonte não
é qualquer pessoa ou qualquer entidade livremente constituída
como tal: só é fonte aquele(a) a quem (que) o PÚBLICO
reconhece ter competência e seriedade na informação
que presta.
Caso flagrante de irresponsabilidade de uma fonte
verificou-se na reportagem de uma cadeia de televisão sobre
o envenenamento de centenas de pombos no Rossio, em Lisboa, com
acusações gratuitas de populares, simples curiosos
da mortandade, ao presidente da Câmara de Lisboa. Com a
agravante suplementar de não se ter procurado ouvir o acusado,
nem sequer contrapor a explicação oficial do facto.
Cf. Informar sem Manipular, Difamar
ou Intoxicar.
b. A fonte pode autorizar a sua identificação
ou impedi-la. Pode autorizar a divulgação da informação
que presta ou impedi-la. O primeiro impedimento configura uma situação
de exigência de anonimato. O segundo de "off the record".
Quando a fonte autoriza a sua identificação e a divulgação
da informação prestada há informação
aberta, "on the record".
c. O jornalista do PÚBLICO deve, sempre que
considerar estar a ser objecto de algum condicionamento, recusar
receber informações não atribuíveis
ou "off the record".
d. Quando se trata de opiniões, o PÚBLICO
só reproduz as que forem atribuíveis a fontes claramente
identificadas.
e. O anonimato e o "off the record" só
existem para proteger a integridade e liberdade das fontes, não
são formas de incitamento à irresponsabilidade das
fontes.
f. O jornalista deve sempre confrontar a fonte que
exige o anonimato ou o "off the record" com a real necessidade
de tal exigência, não aceitando com facilidade a evocação
prévia de tais compromissos sobre assuntos em que a fonte
nada tem a temer.
g. Todo o jornalista que publica informações
não atribuíveis a fontes claramente identificadas
torna-se, perante os seus leitores, o único garante da veracidade
dessas informações.
Ao jornalista cabe respeitar escrupulosamente
o compromisso de "off the record". Mas a sua obrigação
é informar o público. Por isso, deve procurar outras
pistas e "furar" noutras direcções, desde
que nunca ponha em causa a fonte de origem. Será o caso
da reconstituição de uma reunião "à
porta fechada" de grande interesse jornalístico ou,
durante a guerra civil em Angola, a descrição do
dia-a-dia dos portugueses no Huambo.
h. Toda a informação, "on"
ou "off", deve ser sempre avaliada, confirmada e, se possível,
contraditada antes da publicação.
i. Nessa avaliação influem três
factores: o valor intrínseco da informação,
a possibilidade de ela ser comprovada e a idoneidade da fonte. O
princípio do contraditório prevalecerá sempre
que houver mais de uma pessoa ou entidade envolvidas.
Aurora Verdades, presidente da Associação
dos Amigos da Mulher Angolana, anuncia a sua desvinculação
da UNITA em protesto contra o assassínio da filha, em Angola,
e acusa a UNITA de silenciar o crime, alegadamente praticado por
um seu comandante militar. É sem dúvida um caso
que requeria que também se ouvisse alguém da delegação
da UNITA em Lisboa.
j. Qualquer informação "off"
ou "on" deverá ser sempre cruzada com, pelo menos,
duas fontes diferentes e independentes entre si.
k. As informações fornecidas com qualquer
embargo deverão ser sempre reconfirmadas e discutidas previamente
com o responsável do sector.
l. Se subsistirem dúvidas quanto à veracidade
de uma informação, é preferível adiar
a sua publicação, sacrificando, inclusive, a actualidade.
Em Abril de 1985, uma das duas agências
de notícias portuguesas revelou, instantes após
o acidente ferroviário de Alcafache, que o número
de mortos ascendia a cerca de 400. O "flash", logo difundido
pela rádio e televisão, provocou um episódio
inédito na história da RTP: o "pivot"
do telejornal, confrontado de surpresa com a dimensão da
tragédia, dada pelo telex original, começou a chorar
em plena emissão. Quando a outra agência informou
que só havia quatro mortos confirmados e que as previsões
elaboradas após uma série de contactos pessoais
e uma ronda exaustiva por instituições hospitalares
e de apoio médico apontavam para menos de 100 mortos
(o que correspondia à realidade), pouco ou nada atenuou
o tremendo impacte provocado pela notícia precipitada.
O jornalista que elaborou o despacho da primeira
agência cometera o erro de não ponderar a veracidade
da sua informação: deu crédito absoluto a
um graduado dos bombeiros que se encontrava no local, notoriamente
influenciado pelo dramatismo de um acidente com dimensões
que nunca antes presenciara.
2. Confiança, responsabilização
e veracidade dos factos
a. Os jornalistas do PÚBLICO devem alimentar
uma relação assídua com as suas fontes de informação,
na base da responsabilização, confiança e respeito
mútuos.
b. Uma relação de independência
implica que se recuse:
informações exclusivamente recolhidas
em "briefings", combinação de notícias
ou participação em qualquer género de campanha;
pagamento ou benefício de favores, ameaças
ou chantagem de qualquer espécie.
Todo o incidente com fontes de informação,
oficiais ou particulares, deverá ser imediatamente comunicado
à Direcção do jornal.
c. Situação nova na imprensa portuguesa
tem sido o "black out" informativo quer como forma
de protesto dos próprios "media" contra determinado
tipo de incidentes, quer visando os próprios "media".
Exemplos do primeiro caso foram a recusa do jornal "A Bola"
de ouvir os futebolistas e dirigentes do FC Porto e a greve informativa
às notícias com origem na Assembleia da República,
em 1993. São formas extremas de luta dos jornalistas envolvendo
questões tão importantes como a liberdade de informação
ou a sua própria segurança pessoal.
Quanto ao "black out" à imprensa,
a experiência mais recente aconselha alguma ponderação
sobre o reatamento noticioso com a entidade ou individualidade que
entendeu cortar com os "media", por esta ou aquela razão.
O reatamento foi decidido unilateralmente e quando e porque mais
convinha a quem o impusera? Perante o "black out" decretado
por instituições, clubes, partidos ou outras organizações,
o dever primeiro do jornalista continua a ser o de informar. Contudo,
o jornalista deverá ponderar a publicação de
informações "oferecidas" por responsáveis
da instituição que criou a situação
de "black out", só por estas serem favoráveis
à imagem da dita instituição.
As situações de "black out"
terão de ser constantemente recordadas, mesmo quando a imprensa
for protagonista do facto como aconteceu durante o boicote
parlamentar.
d. Uma fonte é quase sempre parte interessada
(logo, parcial e incompleta) e o jornalista deve recusar
o papel de mensageiro de notícias não confirmadas,
boatos, "encomendas" ou campanhas de intoxicação
pública.
X, com um processo contra J, está interessado
em fazer passar a sua verdade do litígio. Um empresário
pretende colocar um futebolista estrangeiro no futebol português;
para preparar o terreno, tenta uma pequena manobra de contra-informação:
fazer "constar" (isto é, publicar) o interesse
(inexistente) de dois clubes rivais.
e. A recolha de informações, testemunhos
ou simples opiniões, incluindo a imagem fotográfica,
deve depender sempre de uma garantia: que não existe qualquer
constrangimento ou limitação artificial, de ordem
emocional, psicológica ou até física, das pessoas
envolvidas.
Em que condições um preso dá
uma entrevista ou um refém presta certa declaração?
Qual a validade/credibilidade desse depoimento? Foi o caso dos
pilotos norte-americanos mostrados na televisão iraquiana
durante a crise da guerra do Golfo.
f. As expressões "diz-se que", "consta
que", "parece que" referem-se a boatos e não
a notícias e os boatos não se publicam. Mas a persistência
de rumores pode causar efeitos relevantes ou justificar uma investigação
e daí resultar matéria publicável.
Um caso de notícia não confirmada
que gerou outra notícia: "O boato da morte de Saddam
Hussein fez disparar os preços do petróleo".
Outro caso: o boato de um alegado escândalo político-financeiro
que começou com a notícia da demissão do
então director do SIS, Ladeiro Monteiro, por causa das
escutas do SIS-Madeira. E outro: relacionado pela correspondente
da agência alemã DPA (não se sabe como) com
o caso Luiz Roldan e com o regresso, também inventado,
de Vasco Gonçalves (por causa de uma entrevista na SIC,
no dia seguinte), o boato da iminência de um golpe de Estado
em Portugal deu a volta ao mundo, alimentou conversas alucinantes
em Lisboa durante dois dias e fez disparar o mercado bolsista.
O boato, como é natural, mereceu honras de primeira página...
3.
A identificação e o sigilo profissional
a. Regra geral, uma informação deve
ser sempre atribuída à fonte de origem, identificada
com a maior precisão possível nome, idade e
profissão, cargo ou função. O jornalista deve
bater-se sempre por esse nível de identificação.
A identificação e a individualização
da fonte favorece a autoridade e a credibilidade da informação.
De preferência, usa-se "segundo (o ministro
)",
para referir uma fonte pessoal, e "de acordo com (o último
relatório da OCDE)", quando se trata de uma fonte documental.
A identificação correcta de uma
fonte pessoal menos conhecida deve incluir o nome completo, idade,
profissão, cargo ou função e, se forem relevantes
para o que se está a tratar, o local de residência,
eventuais dados familiares, etc. A precisão é um
requisito da escrita jornalística. Uma fonte documental
deve ser também devidamente descodificada. Cf. Nomes
e Siglas, em Alfabeto do PÚBLICO.
b. Formulações do tipo "o Governo
está a pensar..." não são admissíveis
nas páginas do PÚBLICO. "O gabinete do primeiro-ministro
declarou..." é também uma expressão a
evitar: só as pessoas podem fazer declarações.
c. A recusa de identificação de uma
fonte sem justificação plausível deverá
ser sempre referida pelo jornalista. O carácter fechado da
administração pública portuguesa, onde existem
despachos que obrigam os funcionários ao silêncio ou
à autorização prévia de ministros e
secretários de Estado para prestarem declarações
ou fornecerem informação, não pode ser aceite
como álibi ou facilidade pelo PÚBLICO. Uma das funções
essenciais deste jornal é modificar hábitos instalados
de natureza antidemocrática e anticonstitucional, e não
aceitá-los passivamente.
Muitas vezes é o próprio jornalista
a ser mais papista que o Papa. Foi o que sucedeu na notícia
de uma alegada tentativa de evasão de Emilio di Giovinni
da cadeia do Linhó: "Emilio di Giovinni já
não estava na cadeia do Linhó, no concelho de Sintra,
quando na sexta-feira passada, por volta das 8h, dois helicópteros
ensaiaram uma tentativa de aterragem dentro da prisão,
soube ontem o PÚBLICO." Seguiam-se os pormenores da
prévia transferência de Giovinni e uma citação,
entre aspas, mas não identificada, de alguém da
Direcção-Geral dos Serviços Prisionais: "A
população pode estar sossegada porque Giovinni não
fugiu." Só que, na véspera à noite,
o Canal 1 já dera a mesma informação, com
o director-geral dos Serviços Prisionais em estúdio
a explicar o que se passara. Veio a saber-se, dias depois, que
os helicópteros se deslocavam para o autódromo do
Estoril, onde decorria nesse dia o Grande Prémio de Portugal
em Fórmula 1. Eram dois helicópteros-ambulância...
d. Quando o jornalista está em condições
de assumir a informação i.é., quando
a confirmou junto de fontes independentes entre si, embora todas
tenham exigido o anonimato e noticiá-la no PÚBLICO,
não tem necessidade alguma de recorrer às habituais,
retóricas e desacreditadas fórmulas do género
"fonte digna de crédito", "fonte segura"
ou "fonte próxima de". As fontes, a sê-lo,
devem estar sempre bem colocadas para falar sobre o assunto. "Segundo
as nossas fontes" é outra expressão banida nas
páginas do PÚBLICO. Um jornal bem informado não
precisa de justificar permanentemente as suas notícias. Assume-as
e responsabiliza-se por elas.
Certo |
Errado |
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O primeiro-ministro visitará
Moçambique. |
O primeiro-ministro visitará
Moçambique, soube o PÚBLICO de fonte bem informada. |
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X anunciou no Conselho de Ministros
de ontem que desejava abandonar as suas funções
governativas. |
X anunciou no Conselho deMinistros
de ontem que desejava abandonar as suas funções
governativas, soube o PÚBLICO de fonte do executivo.
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e. Circunstâncias especiais justificam, por
vezes, a não identificação das fontes de informação.
No entanto, o sigilo deverá ser admitido apenas em último
recurso e só quando não há outra forma de obter
a informação ou a sua confirmação. Nesses
casos, e só nesses casos, pode utilizar-se a fórmula
"uma fonte do organismo X que solicitou o anonimato".
Um caso de identificação indevida
passou-se na televisão alemã com Gabriel S., vítima
de perseguição por xenofobia. Neonazis mataram-lhe
o marido, um trabalhador angolano imigrante em Emberswalde, na
antiga RDA. Perseguida e ameaçada pelos agressores do marido,
acedeu um dia a dar uma entrevista a uma emissora de TV local.
Mas, ao contrário do que lhe fora prometido, a cara e a
voz não foram dissimuladas. Resultado: Gabriel S. teve
de se refugiar em Berlim para escapar às ameaças
de morte.
f. Nos casos excepcionais em que o PÚBLICO
aceita atribuir uma informação a fonte não
identificada, a despistagem ou protecção do informador
deve ser cuidada, mas não enganosa, e implica rigor e seriedade:
Rigor: uma fonte não são "fontes",
uma informação prestada pelo dirigente X, pela tendência
Y ou pelo MNE não pode ser atribuída indistintamente
a "meios clubísticos", "partidários"
ou "diplomáticos".
No PÚBLICO não se aceitam fontes-fantasmas
O recurso às fontes-fantasmas ultrapassa
mesmo as fronteiras do ridículo. Um exemplo recolhido do
"perfil" de um político português: "Raciocinando
por analogia, uma fonte próxima de Dias Loureiro dizia-nos
que na política há um pouco de tudo, como no futebol
se a equipa ganha, o treinador é excepcional, se
perde, não passa de um medíocre farsante. O citado
cidadão, que pediu o anonimato, queria com isto dizer que,
em 1985, e sobretudo em 1987, o vitorioso estratego das campanhas
para as eleições legislativas foi o mesmo que esteve
agora por detrás da desastrada campanha para as eleições
ao Parlamento Europeu. (...) Cavaco Silva tem nesta personagem
um amigo inequívoco e um fidelíssimo
servidor. Assegura que a sua disponibilidade é
total e a lealdade com o primeiro-ministro absoluta ."
Seriedade: o leitor tem o direito de saber, por exemplo,
que a informação X envolve especificamente a corrente
(ou os interesses) Y.
Uma declaração ou um comentário
nunca devem ser atribuídos a fontes anónimas.
g. O sigilo deve ser sempre justificado, de modo a
não ser pretexto fácil de desresponsabilização
do autor ou da fonte da informação. A protecção
das fontes determina uma maior responsabilidade do jornalista naquilo
que escreve e nela se joga boa parte da credibilidade do jornal.
h. Em nenhumas circunstâncias o PÚBLICO
e os seus jornalistas se desobrigam do respeito pelo sigilo profissional
e pela protecção das fontes, quaisquer que sejam as
consequências legais daí resultantes. Cf. Segredo
profissional, em Fichas da Lei.
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