Depois da primeira série,
a Colecção Mil Folhas prossegue com mais 30 volumes
da literatura contemporânea. No dia 30 de Dezembro, segunda-feira,
quem comprar o 30º título - "A Metamorfose",
de Franz Kafka - terá grátis o número 31, "Fanny
Owen", de Agustina Bessa-Luís. Os outros livros serão
distribuídos, como habitualmente, às quartas-feiras.
Nos últimos seis meses, a Colecção
Mil Folhas proporcionou a milhões de leitores o acesso
a obras fundamentais da literatura contemporânea.
A propósito deste sucesso, o PÚBLICO quis
saber qual foi o impacte no mercado editorial e nos índices
de leitura. Falámos com sete editoras, a APEL, a
União dos Editores Portugueses e um sociólogo.
As opiniões diferem. Por Marisa Torres da Silva
A adesão sem precendentes por parte
do público à Colecção Mil Folhas
— dois milhões de livros vendidos em seis meses
— foi tão forte que as editoras portuguesas
não puderam ficar alheias. O seu mérito, a
potencialidade de despertar a curiosidade para outros livros
dos autores da colecção e a criação
de novos leitores foram unanimemente apontados como os pontos
mais positivos pelas editoras contactadas — sete das
mais importantes do panorama editorial nacional —
e pelas duas associações representativas dos
editores portugueses, APEL e UEP. Mas as opiniões
das editoras divergem em relação ao impacto
da colecção sobre o panorama editorial: se,
por um lado, algumas vêem a iniciativa como um benefício,
que não interfere com o mercado normal do livro,
outras olham-na com reserva, considerando-a até um
desastre para quem detém os direitos dos livros.
“Tudo aquilo que se faça pelo
livro e pela divulgação de bons autores é,
desde já, positivo”, disse Nelson de Matos,
editor das Publicações D. Quixote. Também
Francisco Vale, da Relógio d’Água, referiu
que a colecção “permite uma divulgação
alargada das obras literárias a baixos preços,
o que favorece leitores e autores. Promove o livro sem o
banalizar em excesso. A prazo, isso só pode beneficiar
também os editores.”
Com efeito, Carlos Veiga Ferreira, editor
da Teorema, bem como Pedro Moura Bessa, presidente da União
dos Editores Portugueses (UEP), sublinharam a sua importância
no despertar da curiosidade do leitor para outros títulos
dos autores que estão representados na colecção.
João Miguel Guedes, director editorial
da Verbo, destacou ainda um curioso fenómeno que
ocorreu em Itália: o impacto da colecção
realizada pelo jornal “La Repubblica” foi tal
que as leituras de férias recomendadas pelos professores
do ensino superior passaram a incidir sobre esses livros.
Recentemente, num fim-de- semana passado num velho solar
minhoto, na pequena e aconchegada sala onde também
estava a televisão, descobri uma estante com uma
colecção de livros completa — a colecção
RTP. Foi como se recuasse no tempo mais de 30 anos e recordasse
o período em que a estação pública
se empenhou no lançamento de uma pequena biblioteca
básica, com 100 volumes, alguns deles claramente
marcados pelo espírito e ideologia da época
— Portugal ainda era uma ditadura —, mas que
permitiu colocar livros em casa de muitos milhares de portugueses.
Numa notável crónica editada
este domingo no PÚBLICO, Ana Sá Lopes explicava
para que serve um jornal. Como é útil para
limpar o balcão de vidro de uma pastelaria, por exemplo.
Ou para embrulhar a panela do arroz para que este fique
solto, como se pretende.
Claro que há muitas outras utilidades que ela não
referiu - e pelo menos tão importantes. Forrar o
caixote do lixo. Ou embrulhar o peixe, num velho mercado.
Ou aconchegar os copos de vidro numa mudança. Ou...
por aí adiante.
Quando entrei para
o Liceu Camões, a grande moda era utilizarmos as
tampas das garrafas dos refrigerantes para enchê-las
com um fundo de plasticina e colar sobre elas fotografias
de jogadores de futebol. Formávamos assim equipas
que se confrontavam em jogos improvisados durante os intervalos
das aulas. Tratava-se de "jogar às caricas",
num ágil e certeiro exercício de piparotes
dados com sentido estratégico. Utilizávamos
os cromos numerados que iam saindo todas as semanas para
serem colados em cadernetas que davam forma à ideia
de colecção. Era a caderneta dos jogadores
de futebol - como poderia ser a dos grandes artistas musicais
ou a dos mais importantes monumentos do mundo. Algo que
está na base daquilo que hoje se faz com a compra
de jornais. Ou não só: o meu banco envia-me
regularmente um saquinho com talheres que tento não
perder. A senhora que entra no quiosque onde adquiro os
jornais interroga-se sobre se já levou para casa
todos os pires a que tem direito. E assim vai o mundo.
Uma das primeiras colecções
de divulgação literária de que me lembro
foi, ainda na infância, a dos "Livros RTP"
- constava de 100 títulos, foi editada por finais
dos anos 60 e pretendia dar um panorama possível
da literatura portuguesa e universal. Embora menos ambiciosa,
a ideia de publicar agora estes 30 livros às quartas-feiras,
com a edição do PÚBLICO, parece-me
louvável e merecedora de aplauso, na medida em que
permitirá o contacto de muita gente com um número
razoável de obras literárias do século
XX.
Esta nova colecção Mil
Folhas vem mesmo a calhar numa altura em que se discute
um tema como o da televisão "generalista"
"versus" televisão "elitista".
Na verdade, é generalista ou elitista propor ao grande
público autores como Thomas Mann, ou Ernst Hemingway,
ou Mário de Carvalho, ou Álvaro Guerra, ou
tantos outros? Destinar-se-á a colecção
antes de mais à faixa esclarecida dos leitores do
PÚBLICO, aos que gostam de ler, aos que têm
livros, aos que seguem a actualidade cultural? Ou a sua
vantagem estará precisamente em propor livros importantes
aos que não têm essas possibilidades, aos que
não foram, por educação ou hábito
adquirido, devidamente induzidos à prática
da leitura, àqueles cuja vida está normalmente
divorciada da efervescência dos grandes centros da
vida cultural e dos valores que nela vão sendo consagrados?
Dois jornais, um italiano, outro português,
numa iniciativa mais que louvável, propõem
ao seu público habitual uma escolha de livros já
clássicos ou aspirando a sê-lo. Como não
são explícitos quaisquer critérios
dessa escolha - por impossíveis ou inúteis
-, os autores apadrinhados por esses jornais são,
mais do que escolhidos, "eleitos". No fundo, é
bom que assim seja. O arbítrio da eleição,
com o seu quê de divino, é menos pretensioso
que o de uma escolha que, ao fim e ao cabo, nada justifica
se não o arbítrio também divino dessa
eleição.