Quando entrei para
o Liceu Camões, a grande moda era utilizarmos as
tampas das garrafas dos refrigerantes para enchê-las
com um fundo de plasticina e colar sobre elas fotografias
de jogadores de futebol. Formávamos assim equipas
que se confrontavam em jogos improvisados durante os intervalos
das aulas. Tratava-se de "jogar às caricas",
num ágil e certeiro exercício de piparotes
dados com sentido estratégico. Utilizávamos
os cromos numerados que iam saindo todas as semanas para
serem colados em cadernetas que davam forma à ideia
de colecção. Era a caderneta dos jogadores
de futebol - como poderia ser a dos grandes artistas musicais
ou a dos mais importantes monumentos do mundo. Algo que
está na base daquilo que hoje se faz com a compra
de jornais. Ou não só: o meu banco envia-me
regularmente um saquinho com talheres que tento não
perder. A senhora que entra no quiosque onde adquiro os
jornais interroga-se sobre se já levou para casa
todos os pires a que tem direito. E assim vai o mundo.
Todos nós
gostamos - mais ou menos, claro - de coleccionar. As colecções
começam por ser de algum modo indiferentes aos seus
objectos: há uma ampla oscilação entre
aquele que colecciona coisas que só são interessantes
porque são inúteis e aquele que as colecciona
na convicção de estar a reunir o essencial.
Estes últimos têm vocação de
enciclopedistas - instrumentalizam a paixão em nome
de um objectivo nobre de querer saber. Os primeiros, os
que escolhem a futilidade injustificável, têm
a seu favor o arbitrário último e irredutível
de todas as paixões: por quê este e não
aquele? Por quê selos e não borboletas? Por
quê bolas mágicas onde a neve cai silenciosamente
e não renas de peluche?
Nos meus tempos
da embaixada em Paris recebia inúmeras cartas de
coleccionadores. Foi aí que comecei a reflectir sobre
estas formas estranhas e inesperadas de nos relacionarmos
com o mundo. Assim, um velho polícia reformado fazia
colecção de capacetes da polícia. E
escrevia-me porque não conseguiria dormir sem ter
um exemplar de capacete da polícia portuguesa - sentiria
sempre que o mundo estava incompleto. Mais insólita
era aquela mulher que tinha como ideal na vida reunir saquinhos
de areia com a areia das praias de todos os países
do mundo. E queria que eu lhe arranjasse areia de uma praia
portuguesa. Por momentos estive para lhe perguntar por que
não coleccionava o ar de cada país - seria
algo de mais etéreo. Mas percebi que este meu humor
funcionaria como uma agressão inútil (e imprópria
da diplomacia de um país). Estive ainda tentado a
resolver o problema com um pouco de areia de uma praia da
Bretanha. Mas todos os princípios mais elementares
da ética me gritavam que tal seria inadmissível.
Aproveitei então umas férias em Portugal para
recolher um pouco de areia da praia das Avencas na Parede,
e assim satisfiz a terrena inquietação da
minha correspondente.
Lembro-me ainda de uma solicitação
curiosa. Um indivíduo, que teria certamente visto
alguns dos filmes de João César Monteiro,
escreveu-me a dizer como para ele era importante ter uma
colecção de preservativos de todos os países
do mundo. Percebi que se tratava de uma espécie de
"donjuanismo metonímico", se assim me posso
exprimir para designar o que alguns colegas diplomatas,
mais rodados no cinismo das chancelarias, designavam como
"um tarado". Tentei resolver o problema dando-lhe
o endereço da associação Abraço.
Nunca cheguei a saber o que se passou. Mas imagino o coleccionador
de preservativos contemplando com mão diuturna o
conjunto dos seus troféus: quanto imaginário,
meu Deus!
No mundo contemporâneo,
as pessoas são bombardeadas com tantas sugestões,
e são tão livres de escolher, que precisam
de mecanismos que funcionem como redutores de complexidade:
as colecções são um deles. A pessoa
faz a colecção e tem a convicção
de que, não podendo ler tudo, tem ali o que de essencial
deve ler. É isso que se explica o êxito actual
de enciclopédias e dicionários, ou de colecções
de divulgação que permitem em 90 minutos ficar
a saber Hegel ou Popper. É verdade que tudo isto
me lembra aquela colega de faculdade que em plena prova
escrita me sussurrava aos ouvidos: "Eduardo, explique-me
o Hegel!", mas vale mais pouco do que nada, e um bom
livro de introdução a um autor é um
décimo do caminho andado, desde que não funcione
para substituir o conhecimento directo do próprio
autor. Mas a colecção vai ao encontro de uma
angústia fundamental, que é a de que "eu
não posso saber tudo" ou "eu não
posso ler tudo" - digam-me o que devo ler.
E funciona. Como
responsável por uma escolha de romances estrangeiros
contemporâneos para a Planeta di Agostini, posso imaginar
o que, dentro das regras do jogo, que nem sempre facilitam
as opções, são os critérios
de um coordenador da colecção: tentar misturar
autores portugueses com autores estrangeiros, sabendo de
antemão que a escolha dos portugueses é meramente
exemplificativa (podiam ser estes como podiam ser outros),
procurar que títulos conhecidos levem à descoberta
de autores manifestamente mais "difíceis"
como Beckett ou Calvino.
Analisando a lista
que o PÚBLICO anuncia, devo dizer que ela corresponde
exemplarmente ao que se pede neste tipo de situações.
Em 30 livros, há alguns de leitura imprescindível:
"A Metamorfose" do Kafka, "A Obra ao Negro"
de Marguerite Yourcenar, o "1984" de George Orwell,
"Morte em Veneza" de Thomas Mann, "O Som
e a Fúria" de Faulkner, "As Ondas"
de Virginia Woolf, "Se isto é um homem"
de Primo Levi, "O Doutor Jivago" de Boris Pasternak,
"As Vinhas da Ira" de John Steinbeck, ou "Se
numa Noite de Inverno um Viajante" de Italo Calvino.
Isto não significa que não se pudesse encontrar
muitos mais títulos cuja presença se justificaria.
Mas é sempre assim: o universo dos ausentes é
inevitavelmente maior do que o universo dos presentes. E
se os leitores lerem mesmo com atenção estas
obras terão longas e longas horas de leitura inteligente
e estimulante. E ao mesmo tempo aprenderão a ler
melhor com a escrita flutuante e oniricamente disseminada
de Virginia Woolf, com a construção narrativa
de Faulkner e a sua desmontagem metódica em Calvino
(num romance prodigioso de subtileza e argúcia),
com a consciência social de Steinbeck, com a capacidade
de antecipação política de Orwell,
com o universo concentracionário em Primo Levi ou
a clausura dos pesadelos em Kafka. Em certos casos, a memória
do cinema ajuda muito: seja n'"O Doutor Jivago",
seja no inesquecível "Morte em Veneza".
Mas há mais,
claro. Há o Jorge Amado com a sua libertinagem tropical,
Umberto Eco com a sua semiótica posta em formato
de indústria cultural, há a transbordância
romanesca latino-americana com García Márquez,
há um Hemingway que mesmo quando é menor nunca
deixa de ser maior, há a intensidade da escrita de
Marguerite Duras, há a inconsolável beleza
de Cesare Pavese, há um magnífico e muito
português romance de Antonio Tabucchi, como temos
ainda Hermann Hesse, William Golding e o admirável
Simenon.
Do lado português,
percebe-se que um Saramago se justificava amplamente - mas
podíamos ter Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís,
José Cardoso Pires ou António Lobo Antunes.
Se o livro de Lídia Jorge me parece representar mal
a escritora, já João de Melo está presente
com o seu romance mais celebrado. O leitor que não
conhece o humor vagamente melancólico de Mário
de Carvalho deliciar-se-á com "Era Bom que Trocássemos
umas Ideias sobre o Assunto". O mesmo com "Olhos
Verdes" de Luísa Costa Gomes. Vale a pena conhecer
também as opções estilísticas
muito assumidas de Álvaro Guerra - um homem bom e
um intelectual generoso, que acaba de desaparecer.
Esta colecção
tem excelentes opções - que, no entanto, não
ofenderiam se fossem inteiramente diferentes. Teria gostado
de ver nela quatro dos meus escritores preferidos: Robert
Musil, Clarice Lispector, Milan Kundera, Philip Roth - mas
a perfeição não é deste mundo.
E qualquer coleccionador sabe que lhe falta sempre a peça
que encerraria a colecção. Felizmente - é
mesmo por isso que gosta de continuar a coleccionar.