Ricardo Reis
revisitado
Marisa
Torres da Silva
A reconstrução da identidade
imaginária de um dos heterónimos do poeta Fernando
Pessoa constitui o mote do livro "O Ano da Morte de Ricardo
Reis" (1984), um dos melhores romances de José
Saramago, dois anos depois da publicação de
"Memorial do Convento". Ricardo Reis, tal como o
título o deixa prever, é a personagem central
do livro, mas também Fernando Pessoa, o seu criador,
ocupa um lugar preponderante na acção, a qual
se situa historicamente nos anos 30, época de plena
consolidação da ditadura salazarista.
Partindo das pistas biográficas
de Ricardo Reis registadas pelo próprio Pessoa - um
médico que se expatriara desde 1919 no Brasil, por
motivos políticos -, Saramago imagina a personagem
no seu regresso a Portugal em Dezembro de 1935, descrevendo
o seu quotidiano nos nove meses anteriores à sua morte.
Ricardo Reis chega a Lisboa, aluga um quarto de hotel e depois
um apartamento, envolve-se com duas mulheres, Lídia
e Marcenda, é seguido pela polícia, além
de receber sucessivas visitas do falecido Fernando Pessoa,
o que contribui para acentuar o ambiente de irrealidade da
acção.
Em "O Ano da Morte de Ricardo Reis",
a escrita de Saramago possui uma forte marca de intertextualidade,
sendo que os nomes de Marcenda e Lídia derivam ambos
das "Odes de Ricardo Reis" de Pessoa, além
do facto de o romance de Saramago se construir em torno da
personagem inventada pelo poeta, reconstruída através
do diálogo com o seu criador. Também as referências
a Luís de Camões são constantes ao longo
da obra, bem como a presença do escritor argentino
de ascendência portuguesa Jorge Luis Borges. Toda esta
multi-referencialidade que perpassa pelo livro transforma
"O Ano da Morte de Ricardo Reis" num romance que
se transcende a si próprio, posicionando-o numa tradição
literária simultaneamente clássica e moderna,
portuguesa e internacional.
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