Esta nova colecção Mil
Folhas vem mesmo a calhar numa altura em que se discute
um tema como o da televisão "generalista"
"versus" televisão "elitista".
Na verdade, é generalista ou elitista propor ao grande
público autores como Thomas Mann, ou Ernst Hemingway,
ou Mário de Carvalho, ou Álvaro Guerra, ou
tantos outros? Destinar-se-á a colecção
antes de mais à faixa esclarecida dos leitores do
PÚBLICO, aos que gostam de ler, aos que têm
livros, aos que seguem a actualidade cultural? Ou a sua
vantagem estará precisamente em propor livros importantes
aos que não têm essas possibilidades, aos que
não foram, por educação ou hábito
adquirido, devidamente induzidos à prática
da leitura, àqueles cuja vida está normalmente
divorciada da efervescência dos grandes centros da
vida cultural e dos valores que nela vão sendo consagrados?
Não sendo de excluir que haja,
entre os adquirentes previsíveis da Mil Folhas, coleccionadores
de livros, e portanto aqueles que, conhecendo ou possuindo
já edições das obras propostas, não
se importarão de ficar com mais uma edição
delas de muito boa qualidade, parece evidente que os principais
beneficiados são todos aqueles que normalmente estão
arredados do contacto regular com o livro ou da disponibilidade
habitual de grandes textos, mesmo de ficção,
isto é, todos aqueles que, na gíria televisiva,
serão exactamente os espectadores do canal "generalista"...
E vê-se assim como, neste sentido,
é esbatida e mesmo artificial a fronteira entre generalismo
e elitismo, afinal forjada para justificar interesses injustificáveis
e sobrancerias intelectuais de uma arrogância discriminatória
e antidemocrática, servida a pretexto das minorias.
O elitismo, nos grandes meios de comunicação
social, é um conceito que faz muito pouco sentido.
O generalismo não pode nivelar pelo mais baixo. Tem
de visar objectivos que se prendem com a promoção
e difusão da cultura e com a qualificação
permanente do maior número possível de pessoas.
Tem de propor a vastas camadas de interessados aberturas
para um "elitismo" que mais não é
do que a procura e a fruição da qualidade...
Nem uma colecção deste
tipo, nem um programa de televisão generalista se
fizeram para discutir Platão ou Heidegger. Mas podem
e devem ser concebidos para colocar no mercado respectivo
uma infinidade de coisas cujo valor intrínseco decorre
de serem grandes criações do espírito
humano que são acessíveis à maioria,
ou, se se preferir, ao destinatário médio
dos que, no caso, têm uma apetência para a leitura
ou são susceptíveis de desenvolvê-la.
Todas as questões estão
pois em aberto no tocante às políticas do
livro. E por isso, ante as sucessivas asneiras do Estado
na matéria, com a ressalva honrosíssima da
rede de leitura pública lançada e desenvolvida
por Teresa Gouveia, é de saudar o aparecimento de
iniciativas que aproximem o livro de um vasto público,
em condições que compatibilizem a relevância
cultural dos títulos considerados, a qualidade e
a dignidade das edições e o baixo custo delas.
A operação transcende necessariamente as tiragens
normais, tem porventura interesse para os editores com quem
foi contratada e lançará mais de um milhão
de livros em mãos particulares.
A colecção Mil Folhas
que o PÚBLICO lança agora traduz portanto
a assunção de uma responsabilidade muito séria
no tocante aos estímulos à leitura e à
intervenção cultural. Decerto há precedentes,
tanto em Portugal como no estrangeiro (sobretudo no estrangeiro,
por vezes com êxito estrondoso). Entre nós,
o PÚBLICO e vários outros jornais têm,
nos últimos anos, lançado séries de
publicações, seja em fascículos coleccionáveis,
seja em livro, algumas delas com sucesso assinalável.
De cada vez que isto acontece, é mais uma pedrada
no charco da patética amorfia cultural em que o país
vive. Pelo que a experiência, não sendo nova,
é sempre de repetir, quer se trate dos clássicos,
quer de autores do nosso tempo.
O livro a acompanhar o jornal, e beneficiando
portanto da vasta rede de distribuição deste
último, como que entra assim numa "grande superfície"
mais dinâmica, projectando-se num espaço irregular,
mas à escala do território nacional, e penetrando
em segmentos populacionais e ambientes domésticos
muito diversos, mas todos eles notoriamente carenciados
na área do livro e da leitura, como todos os estudos
realizados confirmam de ano para ano. Temos o mais baixo
nível de consumo de livros da Europa, de par com
o mais baixo nível de leitura. Se os estudos sobre
a iliteracia e a atrofia cultural fossem um pouco mais aprofundados,
não seria difícil correlacionar os "scores"
correspondentes e tão pouco estimulantes com a falta
de convívio regular com o livro, nomeadamente com
o livro escrito na nossa língua, seja ela a do original,
seja ela a da tradução.
A estratégia seguida para esta
colecção não descurou o grafismo e
a aparência dos volumes de modo a torná-los
atractivos e apetecidos, sendo que as artes gráficas
aplicadas à estética do livro são também
um valor cultural importante. E, evidentemente, essa estratégia
não descurou também a selecção
das obras, uma entre muitas possíveis, mas que nem
por isso é menos interessante: 30 autores do século
XX, à cadência de um por semana, sendo cerca
de um terço da lista integrado por escritores portugueses,
e cobrindo um leque muito variado de tendências da
ficção contemporânea, desde algumas
obras já "clássicas", como "Siddharta",
de Hermann Hesse, "As Vinhas da Ira", de Steinbeck,
"O Dr. Jivago", de Pasternak, "As Ondas",
de Virginia Woolf, "O Som e a Fúria", de
Faulkner, "A Obra ao Negro", de Marguerite Yourcenar
(porquê "ao" negro, quando, em português,
devia ser "em" negro?), "A Metamorfose",
de Kafka, a outras de textos de desigual, mas inequívoca
importância de autores como Umberto Eco, Hemingway,
Calvino, Bulgakov, Levi, E. M. Forster, Pavese, Tabucchi,
Thomas Mann e outros mais.
Destinada ao grande público,
a colecção Mil Folhas não deixa, pela
sua composição, variedade e qualidade, de
prestar um autêntico "serviço público",
proporcionando o contacto directo com o livro e com os mais
variados escritores, estimulando a leitura, enriquecendo
amenamente os ócios, ajudando a mostrar que o romance
não morreu e que a cultura, afinal, está ao
alcance de todos.
Amanhã, quem sabe?, a receita
pode ser aplicada também aos clássicos. Aos
universais e aos nossos. E, se o critério for idêntico,
o resultado será sem dúvida bem melhor do
que as políticas que andam por aí a servir
gato por lebre.