Introdução
Vicente Jorge Silva
O livro de estilo do PÚBLICO não é
uma cartilha ou um catecismo, mas apenas um conjunto de regras
técnicas e deontológicas que se inspiram em critérios
de bom senso, bom gosto e rigor profissional. Além disso,
um livro de estilo nunca se pretende definitivo: é um texto
em evolução permanente onde se registam princípios,
regras e procedimentos que a vida da Redacção do
jornal for instituindo como adquiridas.
O PÚBLICO tem um estilo próprio que
identifica o jornal perante os seus leitores e a opinião
pública em geral. Esse estilo integra os grandes princípios
fundadores do jornalismo moderno adoptados pelos jornais
de referência em todo o mundo, do "The Washington Post"
e do "The New York Times" ao "La Repubblica",
"El País", "Le Monde" ou "The
Independent" e uma nova sensibilidade para captar
e noticiar os acontecimentos, que caracteriza um jornal como o
"Libération", por exemplo.
O rigor de uma informação completa
e fundamentada sobre factos e não sobre rumores
, a imparcialidade da atitude jornalística, a correcção,
clareza e concisão da escrita são, para o PÚBLICO,
regras essenciais. Mas o respeito escrupuloso por essas regras
não é incompatível com a procura de formas
inovadoras de noticiar, interpretar e editar a actualidade. Pelo
contrário: a adaptação da imprensa à
era da informação impõe a pesquisa imaginativa
de códigos de comunicação adequados a novos
hábitos e tempos de leitura que fazem já parte do
quotidiano português.
Não é fortuito que o aparecimento
do PÚBLICO tenha coincidido com o início da última
década deste século, para a qual se previam mutações
fundamentais que irão moldar a fisionomia do próximo
milénio. A sintonia do PÚBLICO com o espírito
de uma época de viragem é um dos traços que
definem, desde logo, a sua personalidade jornalística:
não queremos perder nada do nosso tempo.
Em nenhum caso o rigor da informação
deverá ser sacrificado a outros critérios, por mais
imperativos que eles possam parecer. Mas rigor de informação
não significa informação cinzenta, baça,
meramente narrativa. Entre a informação-relatório
e a informação-pílula, entre a recusa puritana
do espectáculo jornalístico e o novo-riquismo sensacionalista,
o PÚBLICO escolhe um outro espaço: o de uma imprensa
que associa criativamente padrões clássicos de profissionalismo
com uma disponibilidade permanente para a inovação.
A concepção editorial do PÚBLICO
corresponde a uma dupla exigência, de qualidade e diversidade,
visando áreas de informação e tempos de leitura
claramente diferenciados, conforme as características de
cada uma das publicações que constituem o conjunto
do jornal.
O primeiro caderno, com a actualidade nacional e
internacional, e o segundo caderno, com a actualidade local (e
suas edições distintas em Lisboa e no Porto), terão
um estilo fundamentalmente noticioso, de acordo com o seu ritmo
diário. Já os suplementos e o magazine de domingo
serão marcados por géneros jornalísticos
mais adequados ao seu ritmo semanal.
Embora os princípios de rigor informativo
sejam comuns a todas as publicações do jornal, é
óbvio que as regras técnicas aplicáveis aos
cadernos de edição diária e aos suplementos
ou ao magazine são necessariamente distintas. Finalmente,
cada um dos suplementos e o magazine têm características
específicas que determinam diferenças de estilo
gráfico e redactorial.
Notícias completas e originais, escritas
correctamente, num estilo fluente e incisivo, são o capital
informativo mais precioso do PÚBLICO. Por isso, e sem prejuízo
da desejável e necessária variedade de vocações
orientadas para os diferentes géneros jornalísticos
notícia, crónica, reportagem, inquérito,
entrevista, crítica, etc. , é fundamental
ter em conta que a notícia é a origem e o objectivo
básico do nosso trabalho quotidiano.
É a partir da matéria das notícias
que se estruturam e desenvolvem os outros géneros
e nenhum deles pode dispensar a componente noticiosa que lhes
confere pertinência e acuidade informativa. Mesmo nos casos
em que se abordam temas de carácter intemporal ou quando
a vertente de abordagem é predominantemente magazinesca
ou até ensaística, a preocupação noticiosa
tem de estar presente na orientação do trabalho
jornalístico.
As condições fundamentais da criatividade
jornalística estão intimamente associadas à
dinâmica noticiosa. Entre essas condições,
destacam-se:
A capacidade de projectar sobre acontecimentos,
situações e objectos um olhar novo, explorando novos
ângulos de observação e análise, abrindo
campo à descoberta e ao imprevisto, levantando o véu
sobre o que parecia oculto a uma visão mais imediata ou
comum.
A frescura e a disponibilidade de atitude perante
o real.
O poder de sugestão descritiva que retém
a atenção do leitor.
Noticiar é anunciar o que é novo
e essa regra é válida para todas as áreas
do jornalismo. Mas, para captar a novidade, é preciso atacar
frontalmente os factos e organizar a narrativa de modo que a sua
cadência seja formalmente apelativa e tecnicamente eficaz.
Por outro lado, dar uma informação completa significa
também fornecer ao leitor o contexto dos factos, situações,
personagens ou objectos descritos.
Sem cair em preocupações pedagógicas
ou arquivísticas, que tornam árida e fastidiosa
a leitura dos textos, é preciso que o leitor tenha sempre
acesso aos dados de "background" de uma notícia
ou artigo. É isso que confere solidez à informação
e transmite segurança e confiança ao leitor
que não tem que estar obrigatoriamente familiarizado com
os antecedentes de uma determinada história e, mesmo que
esteja, deseja conferir os dados da sua memória pessoal
com os elementos de referência evocados pelo jornal. Um
breve mas preciso ponto da situação anterior à
actualidade e uma identificação correcta dos actores
que nela intervêm devem constituir uma preocupação
permanente dos jornalistas do PÚBLICO.
O factor humano é essencial numa informação
que se quer viva e não se limita a um repositório
anódino e descolorido de acontecimentos e situações.
O PÚBLICO aposta decididamente na personalização
dos factos e na descrição sugestiva de ambientes,
atmosferas, gestos e atitudes que, sem prejuízo do rigor
da informação, permitem ao leitor enquadrar os comportamentos
dos protagonistas dos acontecimentos no clima social e dramático
em que eles decorrem. A capacidade de retratar esses actores,
sem pretensiosismos psicologistas, faz parte da arte que deve
inspirar todo o trabalho jornalístico: a de saber contar
histórias. Uma informação original, rigorosa
e sólida só funciona jornalisticamente se for pensada
e contada como uma história, por mais breve e fugaz que
ela seja.
Humanizar a matéria informativa, emprestando-lhe
carne e vida, não significa, evidentemente, ceder à
vulgaridade da crónica mundana mais ou menos frívola
e bisbilhoteira. É exactamente o contrário disso
que o PÚBLICO visa. Os pormenores acessórios que
intervêm na descrição humanizada de um facto
não devem fazer perder de vista o essencial.
É a partir da percepção correcta
do que é essencial que o jornalista deve organizar o seu
texto, enriquecendo-o com as observações ambientais
e humanas apropriadas. De qualquer modo, a apreensão do
essencial não é determinada necessariamente pelos
critérios mais óbvios ou correntes: a verdadeira
notícia poderá estar contida, muitas vezes, naquilo
que não se impõe à primeira vista ou que
é contraditório com a visão oficial dos factos.
A crónica sugestiva do ambiente onde decorre uma cerimónia
pode ser jornalisticamente muito mais interessante do que o pretexto
imediato ou oficial que está na origem dessa cerimónia.
O rigor da informação tem como contraponto
indispensável a arte da observação. Uma informação
tecnicamente rigorosa perde sugestão e agressividade jornalística
se não comportar a argúcia da observação
sobre as pessoas e as coisas ou sobre o clima que envolve situações
e acontecimentos. Evidentemente, o espaço da reportagem
é mais propício ao exercício dessa arte do
que o da notícia. Mas também é certo que
uma notícia à primeira vista banal pode ganhar uma
dimensão estimulante e, eventualmente, rica de implicações,
se o jornalista estiver disponível para captar o imprevisto.
Aí intervém aquilo a que tradicionalmente se chamava
a nota de reportagem. Para o PÚBLICO, toda a notícia
deve ser pensada como uma hipótese de reportagem e toda
a reportagem deve ser inspirada por uma notícia.
A abertura do PÚBLICO à criatividade
jornalística não se confunde com ausência
de regras. Mesmo quando se escolhe um ângulo de abordagem
inesperado ou se privilegia um aspecto que não é
imediatamente óbvio, a construção das notícias
tem de ser tecnicamente irrepreensível.
O casamento entre técnica e ética
é um contrato essencial da vocação jornalística.
A criatividade e o rigor técnico não são
concebíveis sem um código ético que identifica
os jornalistas do PÚBLICO, independentemente das suas opções
privadas: a nossa disponibilidade para observar os acontecimentos
não pode ser afectada por preconceitos ou ideias feitas
que desvirtuem o seu sentido.
O poder do jornalismo só tem efectiva legitimidade
quando esse poder não se confunde com nenhum outro. O trabalho
jornalístico não conhece moeda de troca e, tal como
o trabalho artístico e científico, constitui um
fim em si mesmo. O jornalista não é o missionário
de uma verdade instrumental com objectivos políticos, sociais,
económicos ou culturais. Quanto melhor se respeitarem as
regras de ouro da técnica e da deontologia, incorporando
a criatividade e o estilo próprio de cada jornalista, maior
será a credibilidade e a influência do jornal na
opinião pública.
Credibilidade pressupõe responsabilidade.
A responsabilidade dos jornalistas do PÚBLICO começa
logo pela assinatura dos seus textos (com as óbvias excepções
previstas neste Livro de Estilo). Mas a responsabilidade dos jornalistas
implica também dinamismo e iniciativa. Obter e publicar
em primeira mão uma informação sólida
e credível constitui preocupação fundamental
dos jornalistas do PÚBLICO.
Dezembro de 1989
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