Retrato de um pensador errante
Luís Miguel Queirós (texto) e Nelson Garrido (fotos)
 

Deve ter seguido aquele concurso dos “grandes portugueses” em que Salazar foi o mais votado. O que é que lhe parece? É preocupante? É irrelevante?
Nos comentários que se fizeram depois desse resultado, muita gente concluiu pela irrelevância. Mas irrelevância para quem? Este é um dos problemas. Se fosse tão irrelevante como se diz, não tinha suscitado essa espécie de apreensão. Se querem dizer que os efeitos actuais dessa recuperação a título póstumo da figura e do papel de Salazar, e do estatuto do antigo regime, não tem consequências práticas, não perturba esse grande consenso político, quase sonambúlico, que é o nosso, é evidente que têm razão. Mas eu pertenço a uma geração que viveu no interior desse regime. Não nasci dentro dele, mas quase. Durou 40 anos e, ao longo desse tempo, o mundo sofreu transformações radicais e assistiu a coisas que ainda fazem parte do nosso presente. O período da crise das democracias herdadas do século XIX, a guerra, desta vez realmente planetária, como não tinha sido a primeira. E isto tudo passou por um Portugal que era dirigido por esse senhor. E nós, naquela altura, não tínhamos muita fuga, muita possibilidade de escolha. Tivemos de sofrer esse regime. Quiséssemos ou não, estivemos inscritos no que para uns era uma prisão, para outros um regime mais aceitável, e para outros até modelar. Não me venham contar histórias. Eu estive lá e sei que, pelo menos até 1945, uma parte do povo português, se não tinha pelo regime um entusiasmo delirante, aceitava-o. Estava conformado. E alguns até estavam contentes, e outros achavam que o regime tinha aspectos positivos, que se tinham feito estradas – os famosos melhoramentos –, que o país era bem gerido ao nível das Finanças, a base mitológica do sucesso de Salazar. Só uma minoria o contestava. Aliás, duas minorias. Uma era uma minoria-minoria, mas muito militante, e que representava uma nova opção no espectro internacional, que era determinadamente hostil ao regime e que estava organizada para o combater. A outra, que era uma parte da opinião liberal, vinha da República: eram aqueles que, mesmo considerando que o regime podia ter aspectos positivos, achavam que tinha, sobretudo coisas absolutamente inaceitáveis. Esta gente viveu num grande desconforto. O regime era, de facto, intolerável para quem tinha a consciência de que as coisas podiam ser diferentes. E essas pessoas que não apostavam ainda numa saída revolucionária, na qual não acreditavam, tinham de aguentar aqui a pouca liberdade que existia, sobretudo na ordem cultural e na expressão pública dela. Tinham de se acomodar às exigências de um regime onde a censura existia a título oficial. Não está muito feita essa história, porque uma das coisas mais terríveis da censura é que os seus malefícios são-no também por defeito.
Como uma parte dos actores culturais portugueses já se autocensurava – tentavam uma vez e já não tentavam segunda –, não conseguimos medir bem esses malefícios. Mas existiram. Por outro lado, também não deixou de existir uma prática cultural e literária, quase toda ela com a marca “oposição”, mas essa marca – uma insinuação, uma crítica velada – funcionava, paradoxalmente, como uma espécie de “must”. Não está feita a história interna, a história do que foi o verdadeiro comportamento de uma parte dos escritores e intelectuais portugueses nessa época, a ambiguidade que mantiveram em relação ao regime e, em particular, ao seu chefe. Lembro-me muito bem de uma reflexão do Torga quando o regime resolveu comemorar os famosos “35 anos de política do espírito”. Estava indignado com essa espécie de descaramento que era o de se utilizarem as grandes figuras literárias da época, que, com raras excepções, eram todas da oposição. Lá vinha o Régio, lá vinha o Aquilino, lá vinha ele. Ora, nós conhecemos os intelectuais, não é? Ao mesmo tempo que o Torga se indignava, e a justo título, ele provavelmente sentir-se-ia muito mais indignado se não figurasse lá. Um intelectual só não pode perdoar que o reduzam a nada. Veja o Aquilino, que os mais militantes da minha geração inscreveram quase à força nas suas hostes. Depois de 1945, ele chegou realmente a ter obras apreendidas. Mas sempre trouxe nas badanas dos seus livros uma frase de Salazar, a gabar-lhe o estilo. Eram da mesma geração, tinham passado ambos pelo seminário, não eram homens com a mesma mentalidade, mas eram homens do mesmo mundo.
Lembro-me de o Torga me ter contado uma história que se passou com um ministro de Salazar, o Leite Pinto, que ia ao Brasil. O Torga tinha estado lá e era muito conhecido no Brasil, de modo que podia servir como uma espécie de cartão-de-visita, mesmo sendo hostilizado cá dentro. Ora, esse Leite Pinto, antes de partir, foi-se despedir de Salazar e, nessa visita, começou a recitar um poema do Torga. O mais interessante é que Salazar continuou o poema, e acabou de o dizer. O Torga contou-me isto com lágrimas nos olhos. A vida é muito complicada.
 

Essa relativa ambiguidade também se estendia à sua geração?
Os mais jovens da minha geração tinham cortado com o regime, mas não tão radicalmente como se diz. Muitos tinham lá amigos bem colocados e gozavam de uma certa benevolência. Não eram de todo colaboradores, toda a gente sabia o que pensavam no plano político, ideológico, e até cultural. Mas as coisas eram complexas. Não tiveram comparação possível com o que foi o nazismo, mesmo se havia facetas do regime que eram comuns a todos os totalitarismos, pelo menos de tipo europeu.
Num primeiro tempo, o regime é aceite, à espera que o país funcione. Há uma certa atenção positiva. Depois temos a guerra civil espanhola, que foi determinante para a mudança do regime, mesmo se os germes já vinham de trás. A seguir veio a Grande Guerra, que teve um efeito paradoxal, porque forneceu ao regime um certo espaço de tranquilidade. Andávamos todos preocupados em saber se íamos ou não ser invadidos. Depois, terminada a guerra, pensávamos que íamos colher os benefícios da vitória das democracias. E é verdade que houve ali um momento de abertura, que durou uns dois anos. Mas depois as coisas cerraram-se outra vez, porque, com a guerra fria a instalar-se, ficamos no lado da barricada desta Europa que vai mobilizar-se numa cruzada contra o aliado da guerra, que era a União Soviética. A partir daí, paradoxalmente, o regime vai perdendo cada vez mais simpatias, porque também já era outra geração, que queria outras coisas, e que se sentia frustrada. Foi nesta época que eu fui lá para fora.
E vem, finalmente, a revolução de Abril. Com a urgência que ela exigia, não se perdeu grande tempo a repensar, a revisitar pedagogicamente o antigo regime, a mostrar o que era ou deixava de ser. Foi remetido para uma espécie de condenação abstracta, e o velho ditador ficou lá no seu túmulo, no lugar do mau absoluto. Era inevitável que algum dia o cadáver voltasse à tona, como nos maus (e bons) filmes policiais. Talvez seja tempo de reajustarmos as nossas diversas contas com o antigo regime, e, sobretudo, de o compreendermos.
 

É frequente dizer-se que muitos se tornaram democratas no dia 25 de Abril. A intenção da frase é irónica, mas não haverá nela alguma verdade literal?
Eu escrevi um livrinho com o título “O Fascismo Nunca Existiu”. Tinha um título irónico, numa altura em que efectivamente alguns reflexos do antigo regime começavam a querer voltar à tona de água. Mas hoje, passados tantos anos, penso que esta ironia tem alguns aspectos de verdade. Primeiro, o regime nunca se assumiu como fascista, embora na primeira fase seguisse o modelo mussoliniano. Toda a gente sabe que Salazar tinha o retrato de Mussolini na sua secretária, e que só quando ele entrou na guerra é que o substituiu pelo do Pio XII. De resto, não há grandes parecenças entre um grande histrião político, como era Mussolini, e aquele senhor reservado, professor de Coimbra, que era Salazar. De todos esses ditadores, é o mais difícil de definir. Há algumas coisas escritas sobre ele, como as do embaixador Franco Nogueira, muito centradas na acção diplomática, mas há ainda muito a fazer. O contraste entre a literatura suscitada por Mussolini ou Franco e o que se escreveu sobre Salazar é enorme. Mas é claro que a Espanha de Franco e a Itália de Mussolini tiveram muito mais influência nos acontecimentos da Europa do que Portugal. A principal preocupação de Salazar era a de que não se fizessem ondas, para ele poder governar tranquilamente, à sua maneira. E de algum modo conseguiu.
Agora não me digam que esta eleição de Salazar é uma coisa inócua, porque significa, 30 anos após a revolução que trouxe a Portugal uma democracia de tipo europeu, a reabilitação da principal figura do regime que essa revolução depôs.
 

Os métodos de votação também não eram lá muito fiáveis...
Mas a regra do jogo era essa. Com as mesmas regras, outros países mobilizaram-se para promover figuras como Churchill, Reagan e De Gaulle. É claro que, em França, o Molière ficou em 8º e a Edith Piaf em 4º, mas essa é a cultura de televisão em que vivemos.
 

Na eleição portuguesa, há ainda o facto de Álvaro Cunhal ter ficado em segundo lugar.
Na política concreta, a acção de Cunhal foi sobretudo uma acção de clandestinidade, invisível, mas ele pode cristalizar simbolicamente toda a oposição ao regime de Salazar. E há as qualidades pessoais do próprio Álvaro Cunhal. Deu uma visibilidade ao PCP que ainda hoje se mantém. É um dos raros partidos comunistas europeus com alguma representatividade política e, ao nível cultural, continua a ser mais importante do que as pessoas imaginam. Mas o verdadeiro triunfo de Cunhal foi a outro nível, que talvez não lhe interessasse tanto, embora decerto lhe fosse grato: o seu reconhecimento na ordem do cultural. E aí, paradoxalmente, houve um grande contributo de Pacheco Pereira, que o mostrou como uma figura digna de ser estudada, que ajudou a torná-lo popular.
 

Teve um funeral impressionante.
Sim, eu não estava cá, mas soube. Sempre pensei que esse tipo de funeral estaria reservado à Amália, mas parece que o dele ainda foi maior. Cunhal é uma personagem romanesca, altamente icónica, até fisicamente. Agora, o problema é que os representantes, ou os que deviam sê-lo, do novo “status” político, ideológico e cultural que resultou da revolução de Abril foram secundarizados por estas duas escolhas: dois personagens que, podem dizer o que quiserem, eram tudo menos democráticos.
 

Não alinhou nas grande utopias políticas do século XX, mas, a julgar pelo que vem escrevendo, também não parece ver com bons olhos este mundo em que o sucesso económico é já quase o único ideal mobilizador.
Sim, essa é agora a regra imperativa, a título individual e colectivo. O mundo é uma Bolsa. E, portanto, o jogo político, que tinha uma dimensão própria, é hoje o subproduto de um jogo muito mais profundo e radical, que é o das forças de transformação da sociedade, que são de ordem económica, financeira e científica. São elas que comandam tudo o resto. A política, nas sociedades que se querem democráticas, é apenas a maneira de utilizar esses meios da maneira mais aceitável. Mas o ímpeto, o motor da civilização em que estamos, não tem nada de democrático em si mesmo. É uma força cega, como se fosse uma força da natureza, ainda que seja humana. O deus, a que as sociedades se referiam quando ainda havia uma referência transcendente, desapareceu, e estamos agora diante de fenómenos de dinâmica pura. Tudo passa pelos fins da máquina produtiva mundial, que se torna mais abstracta ainda por ser, fundamentalmente, do tipo financeiro. E é uma máquina que se vai destruindo a si própria. Até agora havia carências reais que podiam ser preenchidas. Actualmente, esta máquina produz maravilhas que não garantem nenhum sucesso ao produtor dessas maravilhas, porque rapidamente podem passar a refugo, substituídas por outras ainda mais feéricas.
Isto é um fenómeno relativamente novo. Dantes havia uma carência a preencher. Agora é a precariedade, num oceano de oferta. Essa ideia de se conceber um projecto pessoal com um mínimo de garantias, mesmo tendo os títulos e as competências, para se poder chegar tranquilamente a um certo fim, isso acabou. Ninguém tem garantias. Nem sequer os actores principais, os grandes gestores, porque também são descartáveis. Desapareceram as empresas familiares, mesmo as mais grandiosas, e já não há linhagens, não há aristocracia empresarial. Bom, é uma forma de democracia como outra qualquer. É a democracia por autodestruição. Está bem.

 
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