Retrato de um pensador errante
Luís Miguel Queirós (texto) e Nelson Garrido (fotos)
 

Afastou-se cedo do catolicismo e não se sentiu tentado pelo comunismo. No entanto, quem lê os seus textos mais recentes, fica com a impressão de que acha um pouco ingénuo que a Europa tenha visto no desmoronar do império soviético apenas uma boa notícia...
Sem dúvida. Não há aqui uma linha recta, não se passou de uma coisa sombria para se entrar na luz. É uma luz relativa. E o que se passou na URSS ao longo de todos esses anos, mesmo com os horrores que sabemos, não se passou em vão. Este país de hoje é herdeiro desse, não tem outra cultura teórica senão a que já tinha. Os capitalistas de hoje e os comunistas de ontem são os mesmos, são literalmente os mesmos. O presidente da República veio directamente do KGB. E não é só a herança dos 70 anos de revolução bolchevique, é também o que está por trás disso, toda a história russa. E é preciso ter noção do peso que representa esse regresso da Rússia, esse “outra vez a Rússia”.
É lamentável e dramático que a Europa pense que está completa sem a Rússia. Discute-se o problema de saber se a Turquia, que foi o inimigo tradicional desta Europa, deve entrar na nossa União – e até há razões pelas quais se possa admitir que o deva fazer –, e ignora-se a Rússia, que faz parte da Europa desde que nasceu, ou, em todo o caso, desde que se converteu à fé ortodoxa. Pode a própria Rússia não estar interessada, ou não estar nas condições que esta Europa em construção impõe aoscandidatos à adesão. Mas o que é certo é que, assim, a Rússia é obrigada a fazer o seu próprio jogo. Não vai jogar com os Estados Unidos, por causa da oposição histórica, mas vai rejogar, por exemplo, com a China. E a Europa assiste a isto sem saber o que há-de fazer. A Rússia é o maior parceiro que a Europa tem, mas andamos a pedir batatinhas, para o gás, para isto e para aquilo. Para mim, é espantoso haver esta cegueira.
 

E como é que os Estados Unidos veriam uma aproximação mais decisiva da Europa à Rússia?
De facto, neste momento, o problema da Europa é a América. Eles não sabem o que fazer de nós, mas continuam a ocupar-se e a preocupar-se connosco como se o soubessem. Nós é que não sabemos mesmo o que fazer da América. Passou o tempo em que tínhamos a veleidade de pensar que eles eram uns selvagens e nós a nata do mundo. E agora eles operam como se fossem senhores do planeta. De algum modo, são-no.
 

Há pouco ia também dizer que, no que respeita ao catolicismo, parece agora sentir-se, da sua parte, não direi uma nostalgia...
Se não fosse um mau exemplo, mas muito compreensível, lembraria a geração de 70: tiveram todos uma juventude incendiária e iconoclasta – uma coisa típica, que em geral se repete de geração em geração –, para depois regressarem à missa, mas já era uma outra missa. Eu também me sinto um pouco assim, até pela idade e por esta fase crepuscular da minha vida. Quando se recebeu, na ordem da emoção e dos sentimentos mais profundos, um baptismo – e não falo só do baptismo propriamente dito –, quando se teve esse tipo de formação, ela fica sempre no fundo de nós. E a minha família era organicamente catolicíssima, tive uma mãe piedosa, até mais do que isso. Uma pessoa nunca mais arranca desta matriz. Nesta hora de revivalismos religiosos, e ao mesmo tempo de desertificação, pelo menos aparente, das formas de religião que condicionaram a vida da Europa durante tantos séculos, eu, francamente, considero que os valores do cristianismo não desapareceram, se é que alguma vez entraram como deviam. Penso que esses valores são ainda o futuro do passado, e não a sua morte. Valéry dizia que as civilizações são mortais. As religiões também, mas são menos mortais do que as civilizações.
 

E como vê a Igreja Católica, enquanto instituição?
Creio que a Igreja só está por intermitência à altura do seu próprio passado. Curiosamente, este papa, que é tido como um papa reaccionário, no sentido de vir reiterar uma espécie de dogmática, sobretudo na ordem ética, que caracteriza a mensagem católica, é, a outros níveis, um papa menos reaccionário do que as pessoas julgam. Ele veio despolitizar o discurso da Igreja e é um grande teólogo. Foi o primeiro papa a fazer uma pastoral, ou talvez uma encíclica, já não sei, sobre o tema do amor, na qual o “Eros” é tratado nas suas diversas conotações, e não apenas nessa conotação negativa e pecaminosa que o conceito tinha arrastado até hoje na visão cristã do mundo. As pessoas não dão atenção a estas coisas, mas são muito mais reveladoras do que as posições, mais fáceis, na ordem ideológico-política. Gostei muito desse texto, que cita Nietzsche sem “problemas de pluma”. Nietzsche!, repare bem, o assassino de Deus, o Anti-Cristo. Nesse capítulo, é um papa muito mais aberto do que o anterior, o célebre atleta de Deus. Em todo o caso, estamos num mundo em que nem a palavra dele, nem a de ninguém, tem qualquer eco. Qualquer vedeta de televisão é muito mais importante do que ele. É pena.

 
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