Retrato de um pensador errante
Luís Miguel Queirós (texto) e Nelson Garrido (fotos)
 

Foi toda a vida professor universitário. Como é que vê esta redução drástica, pelo menos em Portugal, dos alunos que procuram cursos de literatura e de estudos clássicos? Não havendo procura, o que é que se faz? Fecha-se? Seria defensável chegar-se a um ponto em que, por exemplo, não houvesse onde estudar latim?
Numa lógica pura de mercado, só quem fornece um ensino que tem efeitos na ordem prática é que pode justificar a sua existência. A tradição, pelo menos desde o Renascimento, foi a de que o Estado achava que um certo número de estudos eram necessários à formação do “honnêt homme”, como dizem os franceses, e que uma pessoa não podia fazer estudos humanísticos sérios sem conhecer o latim, e até o grego. Mas eram, de facto, estudos de uma elite, estudos de luxo.
Os países precisam de saber o que querem, e particularmente os países europeus que se enraízam nessas duas referências, já que elas são o fundamento da nossa própria identidade, a título histórico e simbólico. Compete às Faculdades de Letras, tenham esse ou outro nome, tomar uma opção. Eu penso que, independentemente dos seus efeitos práticos, os ensinos clássicos são formadores em si mesmos. Também precisamos de uma certa cultura do inútil, no sentido empírico do termo.Curiosamente, em alguns países onde asuniversidades atravessam crises semelhantes, tem-se assistido a revivalismos paradoxais, a um novo interesse por essas disciplinas, que estão a ter algum sucesso, resultante da sua própria raridade. Mas penso que vamos entrar num mundo em que a cultura clássica, grega e latina, e outras culturas, tenderão a ser esquecidas. Nesta era de globalização, podemos admitir que o importante será haver cursos de chinês ou japonês, já que provavelmente estes povos estarão destinados a ser o futuro da humanidade. Daqui a cem anos, ou a mil, não sei. Ou então entraremos numa época parecida com a da fundação da Europa propriamente dita, na Idade Média, com esses saberes a refugiarem-se numa espécie de novos mosteiros.

 

É hoje um autor respeitadíssimo, convidam-no para tudo e mais alguma coisa, já lhe deram os prémios da praxe...
Parece que sim. Como me dizia Mário Soares: “Você já tem os prémios todos, não se lhe pode dar o Prémio Pessoa”.
 

Pois, esse não recebeu.
Pois não, não recebi. E por acaso era o único que podia fazer algum sentido ter recebido.
 

Mas o que lhe ia perguntar é se não acha que é mais reconhecido do que lido?
De certeza, mas creio que isso acontece com muita gente. Ainda ontem uma pessoa muito conhecida, que foi ministro, e que me encontrou aqui no Porto, disse-me: “Ah, Lourenço, os seus livros são muito difíceis”. Não sou um escritor muito pedagógico, exijo um certo esforço do leitor. Mas não me queixo. Sei que não posso ser um autor popular, pronto.
 

Os seus livros, nas várias áreas a que se tem dedicado, são sempre vistos como obras fundadoras, referências incontornáveis. No entanto, nem o vejo ser muito seguido, nem o vejo ser muito contestado. Há algumas raras excepções, mas, de um modo geral, é como se as suas coisas fossem tão intocáveis que, literalmente, ninguém lhes toca. Um exemplo que me parece especialmente estranho é o de “Pessoa Revisitado” [Inova, 1973], até por se tratar de um livro especialmente assertivo.
Conhece aquelas reflexões do Voltaire a respeito de um autor da época, muito conhecido: “Ah, as obras dele são santas, ninguém lhes toca”. Passei de um estatuto de anonimato para um certo reconhecimento, mas que é de uma franja de leitores portugueses, geralmente universitários. É assim, o que é que hei-de fazer?
Quanto ao Pessoa: esse livro sobre o Pessoa é de facto um pouco diferente. Mas a floresta pessoana é imensa. Sou apenas mais uma pessoa que escreveu sobre o Pessoa.
Sim, o livro é assertivo e é polémico. A minha paixão pessoana foi um pouco comum à minha geração, que se dividiu em relação ao Pessoa. Nos anos 40, havia uma espécie de campos pró-Pessoa e anti-Pessoa. Eu também entrei nessa polémica, mas só tardiamente me resolvi a responder com argumentos mais consistentes, de fundo, a essas outras leituras de Pessoa.
 

No “Pessoa Revisitado”mostra como o Pessoa ocultou o impacto de Whitman em Caeiro – aquilo a que Harold Bloom chamaria “o encobrimento do precursor” –, para depois o assumir já quase parodicamente em Álvaro de Campos.
Sim, a diferença é que no Campos essa influência é visível.
 

E não lhe parece estranho que toda a gente fale da influência do Whitman em Álvaro de Campos e esse “link” Whitman-Caeiro, ao qual dedicou um livro inteiro, seja geralmente ignorado? A sua tese, para voltar ao que se dizia atrás, não teve seguidores, mas também não foi propriamente contestada.
Na seara pessoana cada um tem a sua pequena quinta, que cultiva com os seus discípulos. Muitos são autores de quem eu gosto, e alguns são meus amigos, mas eles têm aí uma aposta cultural consistente ao longo do tempo. Fazem teses, têm um certo poder cultural. Eu sou um autor privado. Estive tentado, numa certa altura – e até tinha tudo pronto para o fazer –, a servir-me do Pessoa como tese universitária. Mas não o quis fazer. A minha relação com essa obra era de outra ordem. Fui parvo, provavelmente, porque tinha-me facilitado a vida. Ainda cheguei a fazer uns capítulos em francês para apresentar lá na Sorbonne. Mas depois veio isto e aquilo, outras solicitações, e acabei por me desinteressar. A verdade é que também tinha essa relutância de me servir de um autor que, para mim, não é um autor qualquer, mas alguém que me ajudou a ler-me a vários níveis.
 

De facto, no “Pessoa Revisitado” sente-se uma escrita mais visceral do que nos seus outros livros. Como se aquilo lhe dissesse directamente respeito. Não é um olhar neutral...
Pois não, não é nada neutral. Até porque, veja, no fundo, para lá da minha paixão propriamente de leitor por aquela poesia, o Fernando Pessoa foi a arma suprema da minha guerrilha cultural contra outras visões do mundo. A um nível muito profundo, ele põe em causa esse tipo de discurso intrinsecamente dogmático. Sem ser propriamente um filosofo céptico, ele é mais eficaz do que isso, porque tem um cepticismo criador, proliferante. O Fernando Pessoa é um autor de virtualidades, é provavelmente o autor da própria virtualidade. Quando era jovem, fascinou-me aquela espécie de niilismo jubilatório, que era como pôr uma bomba na totalidade do mundo como experiência humana. Servi-me do Fernando Pessoa para ir para um outro sítio, onde não possa ser localizado.
 

E se fôssemos almoçar?
Quando regressei ao hotel, ontem à noite, o taxista disse-me que havia ali um restaurantezinho...

 
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