Retrato de um pensador errante
Luís Miguel Queirós (texto) e Nelson Garrido (fotos)
 

Ainda a propósito dos ensaios que vai deixando para trás. Alguém que descubra um livro seu e que sinta vontade de ler a obra toda, terá dificuldade em seguir, cronologicamente, o seu percurso. Quase todos os livros são recolhas de ensaios dispersos e, num mesmo livro, a distância entre as datas de publicação original de dois textos pode ser de vários anos.
Sim, o meu livro mais orgânico é mesmo o “Pessoa Revisitado”, mas o ensaio sobre Kierkegaard não o é menos, ou mesmo “O Espelho Imaginário”, de que pouco se fala. Todo este “circunstancialismo” a que se refere é uma coisa muito ibérica. Unamuno, tirando a ficção e a poesia, só tem um livro ou dois mais orgânicos, e uma parte da obra de Ortega também é assim, recolhas de ensaios.


Não escreve a pensar nos livros que depois publicará?
Não. Às vezes vejo que tenho coisas que podiam dar um livro e organizo-o.
 

Os seus livros são organizados segundo lógicas temáticas e não está em causa a sua coerência interna. Mas estou a pensar, por exemplo, nos volumes sobre questões europeias. Na “Europa Desencantada” há um texto escrito em 1992 e outro em 2000. Entre ambas as datas, mudou muita coisa na Europa.
Exacto. Já as próprias edições desses livros noutras línguas, em francês ou espanhol, têm diferenças entre elas. Há uma espécie de organização caótica. Claro que as datas têm importância. Na política, as coisas às vezes mudam numa questão de dias.
Já deve ter reparado que costumo assinar os textos, mesmo os que saem na imprensa, com a palavra “Vence” seguida da data. É uma coisa de que não gosto muito, porque parece um bocado pedante, mas quando se trata de comentar assuntos actuais, sobre os quais muitos outros vão escrever – e tendo em conta o tempo que passa entre a redacção do texto, o envio para Portugal, e a publicação –, prefiro não estar sujeito a que depois digam que copiei alguém. É uma preocupação um bocado idiota, mas a razão é esta.
 

A maior parte dessas suas colaborações na imprensa a pretexto de acontecimentos da actualidade mais imediata, acaba por nunca ser recolhida em livro.
Todas essas minhas intervenções políticas e para-políticas são marcadas pela contingência mais óbvia. Às vezes resultam em livros, mas que nunca reedito, como “O Fascismo Nunca Existiu” [1976] ou “O Complexo de Marx” [1979]. Estão muito marcados por um desejo de intervenção numa situação concreta. Alguém poderá vir depois dizer se aquilo tem interesse ou não, mas será já um olhar de historiador. A mim, pessoalmente, não me interessam nada. Desses todos, o único que poderia merecer uma segunda edição é “Os Militares e o Poder” [1975], mesmo sendo um assunto que já não suscita o mesmo interesse em Portugal que suscitou na época. O livro saiu logo a seguir ao 25 de Abril, mas já era “posterímero”, porque devia ter saído antes. Mas sabia que, se o publicasse, nunca mais cá podia voltar. 

 
 1   2   3   4   5   6   7   8   9   10