Retrato de um pensador errante
Luís Miguel Queirós (texto) e Nelson Garrido (fotos)
 

Ainda antes disso, tinha escrito os dois volumes de “Heterodoxia”. [O primeiro saiu em 1949 e o segundo em 1967]. Se, num plano mais filosófico, os seus textos entendem a heterodoxia como algo intrínseco ao humano, o seu livro também se deixava ler como uma contestação das duas principais ortodoxias políticas da época.

Sim, sim, sem dúvida. Esse livro foi uma ruptura. Às vezes temos umas audácias que não merecemos. São as verdadeiras. Essa audácia deixou-me isolado. Ora, a gente precisa de um lugar na caravana da vida, em suma, de uma família. A minha família era essa gente e, com “Heterodoxia”, fiquei só. Já me tinha afastado do catolicismo canónico, do CADC, e agora afastava-me dos outros. E ainda por cima tinha ido para o estrangeiro. Sei que aquele grupo de Coimbra ficou muito surpreendido e muito chateado quando o livro saiu. Andaram para lá a chamar-me traidor. Mas eu tinha feito alguma promessa? Tinha jurado alguma coisa? Eles sabiam muito bem que havia diferenças entre nós. Tanto que, quando na “Vértice” aparecia alguma coisa que tocava em domínios que não lhes eram muito familiares, recorriam a mim. Lembro-me que quando saíram dois volumes do Romain Rolland sobre o Charles Péguy me disseram: “Tu, que és lá do catolicismo, faz aí qualquer coisa sobre isto”. E eu escrevi um texto. Acho até que foi nessa altura que recomecei a ler a fundo Péguy, que depois me marcou muito. Eles sabiam que eu era um passarinho, um passarinho implume, mas que não pertencia propriamente àquela gaiola.
E o que determinou o meu afastamento foi um acaso. Eu frequentava aquela espécie de Europas culturais representadas pelos institutos que existem no interior das universidades e, um dia, num instituto italiano, descobri um calhamaço intitulado “Il Crollo dell’Utopia” [tradução de “Assignment in Utopia”, 1937], de Eugene Lyons, um famoso jornalista americano que tinha estado em Moscovo durante os célebres processos de Estaline. Era uma descrição detalhada de toda aquela tragédia, aquele drama cultural e ideológico. Mesmo antes de aparecerem aqueles livros famosos dos anos 40, como “O Zero e o Infinito”, do Koestler, eu já estava perfeitamente elucidado. 

 
Como é que foi mudar-se de Portugal para França, naquela época?
Imagine o entusiasmo e o espanto de chegar a Bordéus [em 1949] e, na rua principal, ver uma grande faixa de propaganda do Partido Comunista Francês. Veja o que é sair do país de Salazar, atravessar o de Franco, que ainda era bem pior, e chegar a um sítio onde aquilo era permitido, como uma coisa normal. Naquele momento, a França era o país da liberdade. Eu, que aqui cortara com os meus amigos comunistas – enfim, deixei de os ver, mas nunca cortei com eles: o Joaquim Namorado chamava-me “reaça”, mas sempre com um grande sorriso –, fui-me dar lá fora com muita gente do partido. Mas não era o mesmo PC, era um PC que culturalmente estava sob o fogo do olhar dos outros e que era o actor e o objecto de uma discussão que durou anos. Quando eu cheguei a França, o PCF era dominante no plano cultural. Mesmo o Sartre, embora tenha travado a sua guerra, sentia-se muito fascinado. Era o espírito da época. Eu sempre estive interessado nessas discussões, e fui seguindo o que acontecia, mas as minhas certezas em relação ao que não podia admitir nunca variaram. É claro que havia a esperança de que as coisas melhorassem. A URSS podia ter seguido outro caminho, as coisas podiam ter acontecido doutra maneira.
Uma das frases mais profundas que alguma vez li é do Pascoaes: “O futuro é a aurora do passado”. É mesmo isso. O tempo vai re-iluminando o passado de uma outra maneira. Naquela altura só se via o mundo capitalista e, do outro lado, a URSS. Uma guerra fria com possibilidades de se tornar quente. Os espectadores tinham de tomar partido, a menos que não estivessem neste mundo. Era uma discussão infinita entre a democracia burguesa, no melhor dos sentidos, e essa nova proposição que representava a Europa de Leste, dominada pela URSS. Mas a verdade é que não dávamos muito pelo principal actor, que já então eram os Estados Unidos.
Formei-me a sério nessas preocupações de tipo político e ideológico em França, porque a discussão era contínua. Se estivesse na Inglaterra, teria sido diferente. Mas ali era impossível escapar. E tínhamos a convicção de que estávamos a discutir o futuro do mundo, até pelo papel cultural da França, que ainda era muito importante. Estou mesmo convencido de que uma parte daqueles desvios, daquelas estranhezas da União Soviética, não teriam sido possíveis sem a conivência da cultura francesa. No fundo, penso que a cultura francesa foi verdadeiramente a grande sala de propaganda do estalinismo, mas também o lugar onde ele foi discutido e tomado a sério. Também se discutia na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas não naquela tradição hegeliana e marxista de pensar que era a da Europa em geral, e da França em particular. Daí o papel que teve alguém como Sartre. Não é alucinação nossa pensar, retrospectivamente, que era assim. O que acontece é que a França já não tem esse papel, mas na época tinha-o. Creio que o que a galáxia marxista, como se lhe chamou, deu à experiencia soviética foi muito importante, e nem sempre positivo. No plano cultural, foram os Aragon, os Éluard (numa primeira fase), os Pulitzer, os Garaudy, e depois o Edgar Morin daquela altura, e o Sartre, e o Merleau-Ponty. Quando se pensa que Merleau-Ponty escreveu um ensaio inteiro, chamado “Humanismo e Terror”, a racionalizar e a querer compreender como fazendo parte da história do mundo, e sobretudo da história ideológica do Ocidente, os comportamentos do Vichinsky, aqueles falsos processos de Moscovo, que eram julgamentos policiais do mais baixo estofo, vemos bem em que delírio a inteligência – os melhores, como o próprio Merleau-Ponty –, pode cair em determinados momentos. Eu participava nestes debates como observador, e estar lánão era o mesmo que estar em Portugal. A cultura de referência marxista era hegemónica nas universidades francesas, especialmente em alguns departamentos, como o do Hispanismo, onde um dos jovens mestres, Noël Salomon, especialista de Lope de Vega, até era um cunhado meu. Eles estavam convencidos de que o partido jogava nessa frente de intelectuais a sua maior carta. Isto terminou em Maio de 1968, que, na aparência, foi contra o gaullismo, mas, na verdade, era um outro marxismo, uma outra esquerda, que vinha combater o PCF. E eles bem o perceberam, porque, quando chegou a hora, liquidaram o movimento, que era uma aventura que não interessava nada nem à URSS nem ao partido.

 
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