Retrato de um pensador errante
Luís Miguel Queirós (texto) e Nelson Garrido (fotos)
 

[Toca o telefone. É alguém que pede um texto a Eduardo Lourenço.]

Já voltamos a Coimbra. Esta interrupção é um bom pretexto para lhe perguntar se o facto de estar constantemente a ser solicitado para escrever textos e participar em colóquios não lhe cria uma espécie de agenda externa? A natureza um pouco dispersiva da sua obra não resultará, em parte, de escrever muito ao sabor destas contingências?  Ou sente que precisa destes estímulos?

Às vezes pedem-me coisas para as quais não me sinto motivado, outras vezes são-me mesmo absolutamente alheias. Mas uma boa parte do que escrevi é de circunstância e isso contribui, de facto, para acentuar o carácter dispersivo daquilo que eu nunca considerei uma obra. Vejo-o mais como uma errância. Deixei-me sempre levar pelas águas do tempo. E como não tenho projectos de estátua pessoal, é-me indiferente. É claro que muitasdessas coisas que me são propostas me colocam problemas – às vezes não consigo responder como desejaria –, mas, a título por assim dizer póstumo, sou grato a essa gente que me encosta à parede e me obriga a fazer coisas que eu de outro modo não faria. Vou-lhe dar um exemplo, talvez o mais típico de todos. Foi-me proposto que escrevesse sobre Montaigne. Pareceu-me uma coisa delirante: o que é que um estrangeiro pode escrever sobre  Montaigne, a respeito do qual há bibliotecas inteiras? Pensei: não, não vou ter a pretensão de escrever uma linha que seja sobre Montaigne. Mas, depois, um comentário de uma pessoa amiga, francesa, que se espantou, a justo título, que eu encarasse seriamente essa hipótese, despertou o meu amor próprio. Ainda hesitei durante um mês, até que um dia escrevi mesmo. Acontece que é hoje um dos textos que mais me satisfaz ter escrito. 
 

Mas, sendo essencialmente um ensaísta, não fazia sentido que escrevesse sobre o mestre do ensaio?
Sim, mas não com aquela responsabilização. Pediam-me um livro sobre Montaigne [“Montaigne ou la Vie Écrite”, L’Escampette, 1992], a ser editado em Bordéus, terra a que ele, ainda por cima, está muito ligado. Mas a vida também é feita destes acasos. E destes desafios.
 

Retomando essa ideia de que é um estrangeiro na Europa. A verdade é que vive em França há muito tempo. Porque é que não seguiu o trajecto de muitos outros autores, dos quais às vezes até é pouco conhecida a origem nacional, que se interessaram pelos grandes escritores e pensadores europeus? Apesar de ter páginas sobre Kierkegaard, ou Camus, ou Sartre, o essencial da sua obra é sobre Portugal e os autores portugueses. Porque é que escreveu sobre o Antero, digamos, e não sobre Baudelaire? Não sente que poderia ter tido outro percurso, mais próximo, por exemplo, do de um George Steiner?

Talvez por um certo complexo provinciano, ou provincial. Não se levam laranjas para Setúbal. Mas uma parte da minha atenção foi mais tarde desviada para a Europa, só que era uma Europa que não funcionava como Europa, e que se chamava Espanha. Agora, sim, a Espanha é muito europeia, mas naquele tempo a Europa, para nós, ficava além dos Pirinéus. A seguir ao Maio de 1968, e por causa dele, começou a aparecer nas universidades francesas um género de estudos que até aí não existiam, de conceito anglo-saxónico. Era o de História das Ideias. Eu estava então em Nice, no departamento de Estudos Hispânicos, onde ninguém queria dar essa disciplina. Como a minha mulher é hispanista e eu começava a interessar-me pela cultura espanhola, e tinha formação em História e Filosofia, dei esse curso durante vários anos na Universidade de Nice. Tudo isso está inédito, e está em francês. Provavelmente é muito mais texto do que a soma de tudo o resto que eu escrevi, mas nada foi publicado e eu não tenho paciência para reorganizar aquilo. Dei cursos sobre Unamuno, Ortega, Luis Vives, e também sobre Antonio Machado ou Guillén. É uma coisa que ninguém sabe. Nem eu. Como estava a tratar de matéria que para mim era nova, muitas dessas lições estão escritas, ao contrário do que acontece com as minhas aulas de literatura e cultura portuguesas, para as quais nunca escrevia nada. É só pegar naquilo, traduzir e copiar. Há tempos tive de dar uma conferência sobre Unamuno, em Salamanca, e traduzi-a directamente de um desses textos, escrito em 1973. Não havia nada a alterar. Nem todos estarão no mesmo estado de acabamento, mas só a minha grandessíssima preguiça é que me tem impedido de publicar um volume de ensaios ibéricos. É a primeira vez que estou a vender esta mercadoria em público.
Quanto ao Steiner... Eu estou em França há meio século, tinha estado na Alemanha e conheci um pouco a Itália. Sim, podia ter tido um percurso mais próximo do de um Steiner. Mas Steiner tem a vantagem da sua formação literária, e linguística. Além disso, ele, sim, é mesmo de uma cultura da errância por excelência: a cultura judaica. Um português, quando sai de casa, sai mesmo para outro mundo. Mas pensa no que deixou, mais do que se estivesse em casa.

 
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