Regressemos, então, a Coimbra. Fez amizade com o Carlos de Oliveira e com a geração dos neo-realistas. Nunca se aproximou, ou se sentiu tentado a aproximar, do PCP?
O PCP, sabe, não se podia nomear. Era uma realidade clandestina, no sentido mais próprio do termo. Nunca perguntei ao Carlos de Oliveira se estava ou deixava de estar no partido, era uma coisa de algum modo privada. Quando existe um sistema de suspeita generalizada, as palavras têm outra força, outro peso, e é preciso lidar com elas cautelosamente. Mas também, na altura, nos anos 40, eu tinha 18 anos, e a minha consciência política era muito ingénua, muito incipiente. Foi através do contacto com esses amigos que eu me consciencializei um pouco, como então se dizia. É certo que já existia algo a que se podia chamar opções, mas não me era muito fácil admitir nenhuma delas. Fui muito próximo, em termos de camaradagem, de toda essa gente, mas era mais uma aproximação pela negativa, uma atitude de ser do contra, e sobretudo contra o discurso cultural do Estado Novo. Sentia-me próximo dessa nova geração, que discutia, na medida em que isso era possível, que enviava uma mensagem de recusa da ordem estabelecida. Coisa típica, aliás, de uma tradição de Coimbra. Desde a Geração de 70 que são do contra, como todas as gerações que se prezem.
Isso hoje não é um pouco menos óbvio?
É menos óbvio porque vivemos imersos numa pluralidade de discursos, o famoso pós-modernismo. Mas naquele tempo nem sequer era ainda o modernismo.
Escreveu em 1968 “Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista”. Hoje há um pouco o consenso de que o único grande escritor dessa geração foi o Carlos de Oliveira. Acha que há ali outros nomes relevantes, porventura injustiçados?
Tudo depende do ângulo em que nos colocarmos. O neo-realismo também foi um crisma, uma opção. Recebeu esse nome porque devia querer significar uma certa continuidade, uma nova versão, da tradição que o realismo literário instituíra em Portugal, com Eça de Queiroz: uma literatura com um grande conteúdo crítico da realidade, em particular da portuguesa. O neo-realismo seria o realismo do tempo da guerra e do pós-guerra. Na verdade, devia ter-se chamado realismo socialista, mas como não podia ter esse nome, o Joaquim Namorado, creio que foi ele, inventou a designação neo-realismo. Mas era apenas uma máscara.
Os neo-realistas eram jovens militantes ou simpatizantes do PCP, uma organização extremamente minoritária e clandestina, e na qual os intelectuais eram também minoritários, já que o grosso da militância era operária. Aquilo era uma coisa muito de Coimbra, e havia uma grande diferença para a realidade de Lisboa. Eu não conhecia os neo-realistas de Lisboa, nem sequer tinha os livros de outros poetas do mesmo círculo. Por isso é que, quando escrevi “Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista”, já em França, não falei nem do Arquimedes Silva Santos, nem do Mário Dionísio, nem do Manuel da Fonseca, que era muito popular e que, talvez mais do que ninguém, contribuiu para divulgar esse tipo de poesia com intenções de intervenção. Ele tinha humor, coisa invulgar naquela área, como também o tinha o Joaquim Namorado, embora de um género mais sarcástico. Já o Carlos de Oliveira não tem essa veia, tem uma veia romântica.
O seu livro, sendo um ensaio literário, é também um testemunho de quem viveu essa época?
A verdade é que escrevi esse livro para me reconciliar com o Carlos de Oliveira, não ideologicamente, mas pessoalmente. Por isso é que a parte que trata dele é particularmente cuidada. Eu era muito amigo do Carlos e, por ocasião de umas eleições quaisquer, houve uma trapalhada entre ele e o dr. Paulo Quintela, que também era da oposição, mas da corrente liberal, ou social-democrata, embora não se usasse o termo. Não sei reproduzir bem a história, mas era já o PCP com aquela coisa de ser muito severo com quem não alinhava pelas posições deles. O Carlos parece que disse que uma delegação desses liberais que fora a Lisboa tinha traído, ou feito isto ou aquilo. Eu estava ali metido porque o Carlos me tinha falado no assunto, e eu falei ao Torga, que por sua vez contou ao dr. Quintela. Quando soube das acusações do Carlos de Oliveira, o dr. Quintela ficou danado e houve um confronto muito chato numa livraria, que acabou aos empurrões. Uma coisa horrível. O Carlos achou que eu tinha estado na origem daquela peripécia, e eu fiquei com muita pena de nos termos afastado. Penso que a motivação para escrever o livro foi essa, ainda que também houvesse da minha parte uma certa nostalgia por essa que tinha sido a minha geração. O livro é uma espécie de romance disfarçado. Deve ser a coisa mais sincera, mais no primeiro grau, que eu escrevi. |