Um Ano na Crise

Família Lourenço

"Alguma coisa temos de fazer"

Por Graça Barbosa Ribeiro
Adriano Miranda

No escritório forrado a livros, José Vieira Lourenço corre com os olhos as prateleiras e vai dizendo, em jeito de apresentação: "Literatura, Filosofia, Ciências da Educação, Teatro...". Descreve, assim, a organização da biblioteca familiar, reflexo das actividades dele e da mulher, professores, em Coimbra. Ele dá aulas de Filosofia; ela, Clara, está de momento a recebê-las, como doutoranda nas áreas da Literatura e da Sociologia. "O que vê não é luxo, são instrumentos de trabalho", continua José, a referir-se aos livros.

A conversa sobre o dinheiro que gasta (ou não gasta) nas livrarias vem a propósito da crise, daquilo em que se pode cortar e daquilo em que não é possível poupar. José Vieira Lourenço lamenta que não lhe seja permitido, como funcionário público, considerar os livros despesa, para efeitos de IRS.

Com 58 e 56 anos, respectivamente, ele e Clara estão no topo da carreira docente - não passam, propriamente, dificuldades. Mas têm vindo a aprender, "há uns dois anos", a fazer contas, a comparar preços, a poupar onde podem. Compram menos jornais, deixaram de ir jantar ou almoçar fora ao fim-de-semana, poupam nas viagens, optam pelas marcas brancas. "Alguma coisa temos de fazer: ganhamos menos (por causa do corte nos vencimentos dos funcionários públicos), os preços aumentaram (devido à subida do IVA) e as despesas não diminuem ", comenta Clara.

Têm duas filhas - Sofia, de 31 anos, licenciada em Biologia e a fazer mestrado em Nutrição e Saúde, em Copenhaga, Dinamarca; e Inês, cinco anos mais nova, com licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e prestes a regressar ao Brasil, para juntar a um estágio, já feito em São Paulo, o mestrado em Processos e Procedimentos Artísticos.

Tanto Inês como a irmã integram o grupo de licenciados que procuram no estrangeiro as saídas profissionais que "o país lhes nega". Mas, na verdade, reconhece Inês, a citar a música dos Deolinda, o empréstimo que contraiu para ajudar a pagar os estudos não é suficiente, pelo que mesmo do outro lado do oceano continua "um pouco na casinha dos pais". José brinca com o assunto: "A transferência bancária é um cordão umbilical..."

O apoio mais ou menos regular às filhas não é a única despesa do género deste casal, que está a ajudar todos os meses, financeiramente, uma pessoa próxima que há algum tempo enfrenta o desemprego sénior. E este é só um dos sinais da crise que avistam do lugar em que habitam.

José fala dos colegas, professores contratados, que fazem contas para poder ir ao jantar de departamento, que custa dez ou 15 euros, e que temem ficar desempregados no fim do ano lectivo; Clara, dos colegas mais novos, investigadores bolseiros, que adiam casamentos e filhos devido à situação de precariedade em que vivem.

De esquerda, não filiados em qualquer partido e católicos praticantes, consideram que dar a cara e o testemunho "é uma espécie de dever cívico". Uma convicção que não é alheia a outras participações na vida pública e até partidária que já tiveram, por acreditarem, dizem, "que não é preciso ser-se jovem para se ajudar a mudar o mundo".