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Bonecos perfeitos

Produção
de moda

Ricardo Garcia

 

 

 

Presentes a mais

Perguntaram-me o que eu gostaria de oferecer ao mundo como presente de Natal. Antes de pensar, fui ver se havia algo na “caixa”. Abri o armário, pus-me em bicos dos pés e, com os braços ao alto, retirei-a do seu poiso, a prateleira de cima. A manobra é arriscada, passível de contratura intercostal danosa. Efectuei-a, no entanto, sem traumas, apondo o recipiente sobre a cama, para devida inspecção.
Ali são guardados os presentes que, por uma razão ou outra, não tiveram serventia. Foram ofertas sinceras, de gente boa e amiga, mas ou eram roupas grandes, ou livros já lidos, ou objectos deslocados do contexto doméstico, dos gostos pessoais ou muito simplesmente inúteis. Não fica bem devolvê-los, dizendo: “Muito obrigado pelo presente, mas não gosto. Pode levar de volta.” O mais sensato é reciclá-los, dando-os a quem deles se possa servir.
Dentro da caixa encontrei três camisolas, um jogo de guardanapos, quatro livros, uma esponja de banho, uma boneca, duas caixinhas para guardar não sei o quê, uma pusleira, um perfume para homem e, como possível antídoto caso este último não funcione, um conjunto de velas aromáticas. A fazer companhia aos artigos nas trevas do armazenamento, também lá estavam vários ingredientes reaproveitáveis para embrulhos — papéis coloridos, laços cintilantes, sacos estampados e demais amenidades visuais de embelezar prendas.
Obviamente, nada daquilo se prestaria ao papel de oferenda ao planeta. O que é que o mundo faria com tanta tralha? A bem da verdade — ou pelo menos daquela em que acredito — todos aqueles géneros já pertenceram ao mundo, sob outras formas. A boneca e as velas foram petróleo. A gravura e os livros, árvores. Os guardanapos e as camisolas, plantas. As caixinhas, rochas metálicas. O perfume, não faço a menor ideia, mas de certeza que não veio do espaço. Com aqueles materiais cedidos pela Terra e transformados à custa de doses providenciais de energia, fez-se, em diferentes datas, a felicidade momentânea de um aniversariante. Depois, foram para a caixa, à espera de melhor utilidade.
Em nome da coerência perante a escassez dos recursos terrestres, o melhor seria abolir as prendas, ou pelo menos a sua tendência prolífera. Calma, não me classifiquem como eco-inflexível. A dádiva é um gesto simpático de amizade. Gosto de ganhar e de dar presentes, mas creio que já fui mais apreciador do gesto. Seria injusto, de qualquer forma, chegar a esta altura, tendo até agora beneficiado da generosidade alheia, e dizer que, pronto, não há mais presentes para ninguém. Para coibir tal malvadez, bastou ver a reacção de espanto dos meus filhos quando comentei o teor destas linhas e eles perceberam o perigo que aí vinha.
O mercado, é claro, fornece alternativas. À venda, encontra-se o que há de mais inútil na face terrestre, com a substancial diferença de que são produtos reciclados, ou biodegradáveis, ou biológicos, ou livres de CO2, ou verdes, ou amigos do ambiente, ou dispõem de um selo qualquer que os qualifica como inócuos — desde que os compremos.
Já me deparei com melhores exemplos. Um amigo certa vez pediu de presente donativos para organizações humanitárias. Outro simplesmente proibiu as prendas, trocando tudo por vinho e presença física numa festa. Para um terceiro, recolheram-se contribuições para uma única experiência pessoal, uma viagem da balão. Sintomaticamente ou não, todos estes amigos têm um denominador comum: acabam de dobrar o Cabo da Boa Esperança — ou seja, fizeram 50 anos.
A mim, que navego rapidamente rumo à meta, parecem-me boas soluções. Por isso, vou deixar a caixa dos presentes recicláveis lá no seu sítio e espero não abri-la para novos acrescentos. O meu presente ao mundo é este: vou abdicar do excesso de presentes.