Produção
de moda
Miguel Esteves Cardoso
A marmelada anda muito esquecida. Mesmo sexualmente. Hoje em dia os casais curtem e enrolam-se e, quando querem falar da marmelada como gente grande chamam-lhe preliminares.
Preliminares. Como se seguissem os apuramentos, as eliminatórias e a taça. Por uma questão de coerência, mais valia chamar finalíssima ao sexo. Como quem diz: agora só para o ano é que volta a haver sexo. Os brasileiros não ajudam com pré-estimulação sexual. Pré-estimulação sexual, no sentido de estar antes da estimulação sexual, pode ser ler o Diário da República à chuva e cheio de tosse.
O futebol está nos preliminares porque a palavra inglesa foreplay, apesar de ser muito mais sexy do que preliminares também é sonsinha. Before play é antes da brincadeira, como se a marmelada não fosse já uma bela brincadeira.
Antes da brincadeira ou do jogo (ou da peça teatral), o que é que se faz? Corta-se a relva, armam-se as balizas, equipam-se os jogadores. Como se podem comparar estas tarefas monótonas com a marmelada?
É costume culpar os tradutores e elogiar o termo original mas, neste caso, o erro está no foreplay. A bem dizer, foreplay deveria referir-se ao equivalente humano de preparar um campo de futebol: ao tomar banho e vestir-se para sair à noite ou para ficar em casa, na expectativa de ter sorte sexual.
Nessa sorte sexual, cabe a marmelada. Toda, seja da grossa como da fina. Quem se põe giro e é recompensado com uma boa sessão de marmelada já não se pode queixar.
Os pontos são muito importantes na marmelada. Na marmelada que engorda, há muitos pontos: são o ponto-pérola, o ponto-estrada, o ponto-pau e o ponto-caramelo. Na marmelada que emagrece, há os equivalentes. Mesmo antes do primeiro beijo, há pontos deliciosos por conta própria.
Discute-se muito se há marmelada antes do beijo. Claro que há. Há marmelada verbal, só com palavras e silêncios, que pode ser da grossa. Há marmelada visual, com os olhos e sobrancelhas; marmelada vestuária, com a roupa e a maneira de pô-la ou dispô-la. Há muita boa marmelada, tanto da fina como da grossa, sem primeiro beijo e até sem beijo nenhum.
Certo é que, quando se deixa chegar a marmelada a certo ponto, já não se pode voltar atrás. Mas há muitos pontos — todos eles doces — antes de lá chegar.
Chamar marmelada a este conjunto de prazeres tem a vantagem de agradar a ambos os sexos e a todas as sexualidades. Fala-se em marmelada — no meio de uma feira, por exemplo — e toda a gente sorri. Não se obtém o mesmo efeito com preliminares ou curtir.
É verdade que certos autores, ditos literalistas por levarem tudo à letra, associam a marmelada só às mamas, porquanto estas sejam conhecidas entre o povo bruto como marmelos. É redutor e machista limitar assim a marmelada, fazendo-a equivaler ao first base dos adolescentes americanos.
Lá está, outra vez, um desporto, o basebol. O que se passa com esta associação sistemática com o sexo? Desconfio que, para muitos homens e quase nenhumas mulheres, é porque uma coisa é quase tão boa como a outra. E como se isso não fosse já muito estranho (associar uma coisa que se faz com uma a que se assiste), desconfio também que, em muitos casos, a coisa que é quase tão boa não é o desporto.
De resto, como se explica a mania actual de dizer que tudo é better than sex? Seja chocolate, fazer surf ou um jogo de lençóis fofinhos. A ideia é: nada dá mais prazer do que o sexo, excepto este vinho tinto.
Alguma coisa hão-de estar a fazer mal — ou a não fazer — para andarem por aí a dizer, de tantas coisas, que são melhores do que sexo. Ou, por não terem tido esse prazer há muito tempo — ou ainda não terem tido —, esqueceram-se ou ainda não sabem.
Estas pessoas desgraçadas que “têm” sexo ou “fazem” sexo são as mesmas que usam a palavra “sexo” como se fosse sexy, em vez das palavras que Deus nos deu.
Passa-se o mesmo com os marmelos. Já tive muitos marmelos nas mãos e nunca vi um que se parecesse com a mama de uma mulher. Aliás, quanto melhores forem os marmelos, menos se parecem. Bons, bons são os quase em forma de pêra, nem muito pequenos nem muito grandes, mas rijos e pesadinhos, que se descascam com dificuldade mas com grande aproveitamento.
O literalismo de quem limita a marmelada às mamas é um erro. Levado ao extremo, há quem insista em incorporar a gamboa. A gamboa é muito parecida com o marmelo, mas é uma fruta diferente. O marmelo, sendo mais ácido e perfumado, é muito melhor para a marmelada. Muitas vezes vendem-nos gamboas como marmelos mas não é bem gato por lebre: a gamboa também é boa e também faz doces bons, como a gamboada.
O marmelo tem mais pectina (que também não vem de peito, seus tarados) do que a gamboa, que se pode comer crua. É assim que procuram socorrer-se os literalistas: recorrendo à gamboa e à gamboada. O argumento é o seguinte: se as gambas são pernas, gamboas são pernas boas. Assim, gamboada é, por assim dizer, a marmelada da cintura para baixo.
Este faseamento, este pensamento por etapas acaba por ser tão sofisticado como o dos dos juvenis americanos. O ideal, presumivelmente, será passar da marmelada para a gamboada e da gamboada para a mariscada final.
É muito protestante esta maneira de pensar — e estraga a marmelada toda. É bom ter mapas, metas e objectivos — numa empresa. Mas não na cama. E muito menos no sofá ou na rua.
Confunde-se o prazer sexual com o desportivo e, como se isso não fosse suficientemente desmotivador, confunde-se tudo ainda mais um bocadinho com as boas práticas comerciais ou a mais recente moda de marketing.
É como a diferença entre a marmelada feita em casa e a industrial. A marmelada feita em casa sabe sempre melhor — e pode-se provar quente. A industrial também pode ser boa — é doce e dá energia e pode vir numa embalagem muito bonita — mas está sempre fria e acaba por sair mais cara.
Os homens cada vez confundem mais serem participantes e espectadores. Não é só no futebol, em que as únicas pessoas com juízo são as que são pagas para estar ali. É na inexplicável mania de ir a clubes de strippers e pagar só para ver, rodeado por outros homens. Onde está a marmelada se é proibido mexer? Na melhor marmelada é sempre preciso mexer.
Para a fina, usa-se a varinha mágica. Para a grossa, que leva mais tempo, usa-se o passe-vite.
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