Produção
de moda
Com dois séculos de existência, o Tavares é o restaurante mais antigo de Portugal e mantém a aura de excelência que fez a sua fama. A bela sala de refeições é um oásis de silêncio e tranquilidade, mas do outro lado das portas, na cozinha, o ritmo de trabalho é frenético. José Avillez lidera uma orquestra bem afinada. Uma sugestão para um jantar de Ano Novo.
Texto Luís Francisco Fotografia Pedro Cunha
Passam poucos minutos das oito da noite quando chega o primeiro pedido. José Avillez lê em voz alta o papelinho que lhe é passado pelo chefe de sala: "Duas cavalas: a seguir, um bacalhau e um pombo!" E o momento seguinte assusta os incautos. "Chefe!" Num coro marcial, o pessoal da cozinha, ao todo mais seis pessoas, dá sinal de que recebeu a mensagem. Ninguém parou o que estava a fazer, os olhos não se desviaram das tarefas em marcha. Só um grito forte, unânime, um solo de organismo colectivo: "Chefe!" Estamos na cozinha do restaurante Tavares, em Lisboa, e isto quer dizer que toda a gente recebeu o recado.
Se a descrição desperta ecos de organização militar é porque, de facto, aqui vive-se um regime, digamos... marcial. É o próprio José Avillez, um dos mais conceituados chefes portugueses e líder da equipa do Tavares, quem o diz: "Entramos às nove da manhã e saímos à meia-noite. Isto é um regime quase militar!" Se a mensagem precisasse de ser comprovada bastaria verificar que toda a gente veste o uniforme da casa e constatar que há uma cadeia de comando: Avillez e o seu adjunto, o chefe David Jesus, lideram as hostes; atrás deles, as linhas de carnes, peixes e entradas. Cada uma com o seu responsável.
Esta noite o trabalho mais intenso começou depois das 20h, porque quem marcou uma mesa para as 19h30 não apareceu. O restaurante tem lugar para 60 pessoas e não usa cada mesa mais do que uma vez: se alguém entra às 19h30 e sai às 21h, esses lugares continuarão vazios até ao final da noite. Aqui, servem-se em média 50 jantares por noite e o preço por pessoa pode ir para lá dos 100 euros.
Como os primeiros clientes previstos não aparecem, Avillez aproveita para explicar alguns dos procedimentos na cozinha, onde se vão ouvindo os sons do "formigueiro": água a correr, tachos a bater, talheres a tinir. Ninguém fala. E a primeira explicação é essa: "Tentamos que as mensagens sejam curtas e directas, para evitar confusão. Aliás, quando a equipa está rotinada, basta um olhar para que as pessoas se entendam." Neste momento não há estagiários, mas no final da semana hão-de chegar dois, um brasileiro e um canadiano. "Temos muitos pedidos de vários países e também das mais diversas regiões de Portugal", explica Avillez, que também faz rodar o seu pessoal pelas grandes cozinhas do mundo. Mas para juntar um estágio no prestigiado Tavares ao seu currículo é preciso estar preparado para sofrer. E nem toda a gente tem o que é preciso: "Há pouco tempo, um estagiário que entrou na terça de manhã já não veio depois da pausa da tarde; e outros dois faltaram no dia seguinte. Perdi três estagiários em 24 horas..."
O preço a pagar
Ter-se-ão sentido desconfortáveis no sítio, talvez se assustassem com o ritmo de trabalho. O pessoal entra às 9h, com alguma tolerância (meia hora) para alguns, e deveria beneficiar de uma pausa entre as 16 e as 18h, mas isso só no papel. Na prática, acaba por ser o chefe a mandá-los sair por uns minutos, "para beberem um café e respirarem um bocado". Jantam por volta das 19h, quem fuma sai por uns minutos para fumar um cigarro ("Aqui não há grandes fumadores; não têm tempo..."). Segue-se a "tareia" da hora de jantar e depois o final de festa, com arrumações e preparação de ingredientes para o dia seguinte. Para lá da meia-noite estarão despachados.
Não admira que se recupere a ideia de regime militar: a vida é passada, quase exclusivamente, dentro do quartel, com uma vincada cadeia de comando. "Se alguém quer ir à casa de banho, tem de pedir autorização para deixar a cozinha", explica José Avillez. Não é fácil viver assim, especialmente para os que têm família. E, nesse particular, o chefe dá o exemplo: com um filho de 11 meses e a mulher grávida de cinco meses, o líder da cozinha do Tavares conhece bem "o preço a pagar" pela ambição de ser o melhor.
Mas todo este trabalho de bastidores, este afinar da máquina, começa a dar frutos quando o ritmo se intensifica. "Por volta das 21h30 é que isto vai estar no máximo; depois são 45 minutos e está feito", prognostica Avillez, empratando os primeiros pedidos no balcão que separa a cozinha da zona dos empregados de mesa. Estes são bem a imagem dos dois mundos do Tavares: aqui, da porta para cá, nos bastidores, movem-se em ritmo de corrida, movimentos céleres mas bem coordenados, por entre instruções incisivas e recados quase monossilábicos. Assim que regressam à sala, por uma porta diferente, o seu ritmo abranda imediatamente, como se alguém mexesse na velocidade do filme. Do lado de cá, um formigueiro; do lado de lá, um mundo de tranquilidade.
Tudo indica que esta será uma noite normal no Tavares. As mesas estão todas reservadas (falharão duas das reservas) e, conforme previsto, o ritmo de trabalho intensifica-se a partir das 21h. E é então que a impressionante máquina humana se mostra na sua impressionante dimensão de organismo colectivo: torna-se impossível seguir tudo o que se passa nestes metros quadrados de fogões, bancadas e armários. Ouvem-se os ruídos, agora abafados pelo som forte do exaustor, percebem-se os movimentos, acompanha-se o fluxo de trabalho da linha de montagem que leva até aos dois chefes tudo o que precisam para fazer o prato.
Os olhos também comem
José Avillez e David Jesus estão no balcão. Colocam os pratos que vão preencher, desinfectam-nos com um borrifo de gin ("Tem álcool suficiente para a higiene e deixa um cheirinho..."), limpam com um pano e constroem as suas telas culinárias. Nalguns casos, como acontece com o lavagante, a "decoração" do prato – neste caso, com pelo menos uma dúzia de ingredientes e temperos diferentes – toma bastante mais tempo do que a sua confecção, mas estamos num daqueles sítios onde, claramente, os olhos também comem...
Só os dois responsáveis máximos da cozinha fazem o prato final. E isto tem uma razão. José Avillez: "Se alguma coisa chegar aqui mal, a responsabilidade é do chefe de linha; se alguma coisa chegar mal à sala, a responsabilidade é minha." E este último filtro não é uma figura de estilo: o chefe prova sempre os molhos e as bases antes de as colocar no prato, optando, de vez em quando por rectificar os temperos. São gestos rápidos, mecânicos, eficazes: espátulas, pinças ou colheres saem do bolso situado na manga do braço esquerdo, passam pelos cozinhados e pela boca, mergulham num recipiente com água quente, secam-se num pano pendurado à cintura e voltam para o bolso. Os pedidos, alinhados em grampos sobre o balcão de empratação (onde três holofotes garantem que a comida não arrefece enquanto é arrumada no prato) vão-se sucedendo. Sai lavagante azul, cavala (marinada e braseada a maçarico, com gel de gaspacho alentejano, cerejas da Cova da Beira e orégãos), horta da Galinha dos Ovos de Ouro (ovo cozinhado a baixa temperatura com aromas da terra), Paisagem alentejana 2010 (pezinhos de porco de coentrada com gelatina de coentros e pão alentejano), amêijoas à Bulhão Pato. São entradas.
Nos pratos principais, entre outros, brilham o bacalhau cozido (em azeite com tomatada, "migas" crocantes com hortelã da ribeira e figos do Algarve), o salmonete assado (com migas de choco com tinta e molho dos fígados), o cordeiro de leite (em duas cozeduras, guisado de ervilhas em puré, ervilhas salteadas e hortelã) e o pombo assado (com ferrero rocher de foie gras e trufa, acelgas salteadas, puré de reineta e molho cortado com aromas de avelã e canela).
Mas os maiores desafios surgem quando os clientes optam pelo menu de degustação. "Dois Menus Desassossego!", anuncia José Avillez. O grito de "Chefe" já sai agora menos unânime, mas não há dúvidas: isto significa que há que preparar seis pratos, réplicas menores de alguns que estão no menu e outros exclusivos. Estão lá a cavala, o ovo, os pezinhos, o salmonete e o cordeiro, mas também uma bela novidade: Cascais à beira-mar, uma paleta de mariscos pouco ou nada cozinhados colocada sobre um fundo de algas de onde o azoto líquido faz subir vapores oceânicos.
O fim de festa
José Avillez parece ter sido optimista na sua previsão da "hora de ponta"... Já são quase 22h e o ritmo não abranda. "Lamento não estar a ser um bom anfitrião", lança a dado momento, enquanto desenha arabescos de puré de maçã em dois pratos que a seguir receberão suculentos nacos de pombo. Mas um quarto de hora depois percebe-se que já não estão a chegar pedidos novos – de seis papelinhos alinhados passa-se a cinco, depois a três...
Por volta das 22h45 o ruído de fundo da cozinha mudou novamente. Agora voltam a ouvir-se as torneiras e os tachos a serem arrumados, em vez do som dos fritos e o raspar de colheres e espátulas. Limpam-se bancadas, verificam-se os ingredientes que sobram e que passaram o serão arrumados em recipientes nas gavetas que ficam debaixo do balcão dos chefes. O ambiente desanuvia-se, já há quem troque impressões num tom informal e alguns sorrisos saúdam uma ou outra observação mais animada. O próprio José Avillez sai do ritmo frenético e reencontra a disponibilidade descontraída que é a sua imagem de marca. Vai buscar uma ementa, fala de alguns pratos, da constante procura de renovação e da impossibilidade de tirar algumas das sugestões da lista: "Há quem venha cá, repetidamente, para comer a mesma coisa. Há pratos, como o bacalhau à Brás ou as amêijoas, que não podemos tirar." O relógio lá do fundo marca 23h10 quando saem os três últimos pratos, todos de cordeiro. Mas o trabalho não acabou para as "formiguinhas" da cozinha. Antes de saírem, ainda será preciso verificar stocks, fazer listas de compras e preparar alguns ingredientes para o dia seguinte. O cordeiro, por exemplo, e já que falamos dele, tem de ser deixado a marinar de um dia para o outro.
Mas para José Avillez, o homem que ganhou para o Tavares uma estrela Michelin e não esconde a ambição de ir mais além, resta ainda outra tarefa: os clientes de duas das mesas pediram para falar com o chefe. Enquanto aguarda que terminem as refeições, bebe água de uma garrafa de litro e meio, olha em volta e desabafa, agora num tom que já não esconde uma linha de cansaço: "E é assim a nossa vida!"
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