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Bonecos perfeitos

Produção
de moda

Paulo Moura

 

 

 

Ela dorme em Jerusalém

Sentada a meu lado, no banco do autocarro, segue uma rapariga loira, de vinte e poucos anos, jeans e sandálias. Traz uma mochila e qualquer coisa a tiracolo que não percebo logo o que é. Um saco, uma máquina fotográfica, um ipad? Não chego a meter conversa porque ela, mal começamos a andar, encosta-se para o lado, enrosca-se no banco e adormece.
Ao cair da tarde a Cidade Velha esvaziou-se, mas não por muito tempo. Saíram de cena os figurantes do grande drama universal. Os barbudos integristas muçulmanos, os ortodoxos judeus com os seus chapéus pretos e trancinhas, as procissões cristãs, com sinos e incenso, actores numa encenação simbólica e eterna, um tótem sem o qual o mundo perderia o rumo.
A escritora Linda Grant observou que em nenhuma outra cidade as pessoas se vestem tão rigorosamente de acordo com as crenças que têm, como se o fundamental das suas vidas fosse essa definição de papéis. Uma definição que permite saber o que cada um pensa e sente só com um relance, e que os ultrapassa como indivíduos. Não há ambiguidades em Jerusalém: tudo é o que deve ser. Há apenas loucura.
Uma vez, Linda encontrou na Cidade Velha um par de gigantes americanos de longas barbas vestidos com mantos cintados com cordas sobre calças Lewis e botas Timberland conversando com um ultra-ortodoxo. Diziam-lhe que no Texas, onde moravam, tinham recebido uma mensagem do Senhor mandando-os a Israel converter os judeus ao Cristianismo. O ultra ria às gargalhadas.
A rapariga do autocarro balbucia qualquer coisa. Volto-me para responder, mas ela dorme. Sonha, mas não larga o objecto que traz preso às costas com uma fita de lona. Abraça-o com firmeza, envolve-o com o corpo todo, e eu vejo apenas a mão crispada sobre uma das extremidades do gadget, que ainda não consigo identificar. Noto uma certa incongruência entre esta postura do tronco da rapariga e a fragilidade dos seus pés nus.
Ao fim da tarde, eram cada vez menos os judeus a fazer as suas preces, abanando a cabeça em vénias junto ao Muro das Lamentações, único vestígio do templo construído por Salomão. Iam desaparecendo os muçulmanos de visita à mesquita de Al-Aqsa e ao Qoubbet es Sakhra, o Zimbório do Rochedo, onde Maomé ascendeu ao Céu, montado num jumento branco. Desapareceram os peregrinos cristãos da Igreja do Santo Sepulcro, construída no lugar onde Cristo morreu.
Por momentos, o palco ficou vazio. Não sereno. Isso nunca acontece em Jerusalém. Mas quieto e tenso, como se os holofotes e o sistema sonoro estivessem ligados, à espera de um empolgante segundo acto.
Pouco depois, as ruas estavam cheias de gente. Mas ao princípio era o som, poderoso como um trovão, que transformava o rosto da cidade. Pareciam pancadas provindas do centro da Terra, a reverberar na Torre de David e Porta de Jaffa, na muralha que circunda a Cidade Velha. “The night spectacular”, estava escrito na entrada por onde todos os invasores profanaram Yerushalayim, a cidade da paz.
Não eram os canhões nem os cavalos, mas o ritmo de YMCA, em versão de dança. À noite, a Torre de David não é museu, é discoteca. Dali parte a rua Jaffa cujos candeeiros apagavam agora a solenidade histórica diurna. A Cidade Velha estava irreconhecível, afundava-se nas montanhas da Judeia. A rua Ben Yehuda, perpendicular à Jaffa, entrava na cidade nova que amanhecia com a noite.
A rapariga ao pé de mim, no autocarro, mexe-se um pouco no banco. A posição não é a mais confortável para o sono profundo em que quer mergulhar. Nota-se que está exausta. Deve ter passado a noite nos bares de Jerusalém Oriental, como eu.
Havia grupos de jovens a conversar no meio das lages brancas e das árvores a perder de vista, bandas a tocar guitarras e tambores, casais sentados nas esplanadas de cadeiras de bambu, raparigas de roupas extravagantes, rapazes exibindo cartazes a dizer “free kiss”, outros a fumar cachimbos de água, multidões a encher restaurantes, cafés, pizzarias, gelatarias, bares, lojas, abertas até à meia-noite. Do Begin Bar, do Fusion Dance, do Nadin Pub brotavam músicas de estilos opostos, que se misturavam tal como os neons em hebraico e inglês.
Nas ruas Joseph Rivlin e Joel Mosh Salomon havia sapatarias, lojinhas de moda e artesanato alternativas, na rua Mamila tudo era luxuoso e limpo, na Ben Yuhuda as pessoas encontravam-se para falar, de pé ou ao balcão dos clubes e à mesa dos cafés. Os cafés onde, segundo Linda Grant, é normal, ao contrário do que sucede em qualquer cidade europeia ou americana, discutir-se Kant, neo-colonialismo, epistemologia ou o novo romance sueco.
O jornalista e escritor Uri Avner conta que foi no dia 29 de Novembro de 1947 que os cafés da rua Ben Yehuda se encheram pela primeira vez. A ONU tinha acabado de votar o plano de partilha da Palestina, e os judeus vieram para aqui comemorar a conquista da terra prometida. Um grupo de jovens violentou a porta de um café e desatou a roubar bebidas e bolos. O proprietário apareceu aos gritos, mas acabou por achar que agora tudo pertencia a todos, e ajudou na distribuição. Meses depois seria criado o Estado de Israel e começaria a guerra com os árabes.
A noite avançava e estava cada vez mais gente nas ruas. À entrada das lojas e dos centros comerciais havia detectores de metais e polícias que revistavam os clientes. Entre os jovens sentados nas esplanadas havia sempre alguns fardados e armados.
A rapariga dorme profundamente e não dá por mim esgueirando-me para espreitar sobre o seu ombro. Finalmente percebo: o que ela leva é uma metralhadora. Está carregada e eu, sem grandes dificuldades, poderia retirar-lha dos braços e fazer uma razia no autocarro. É isto que penso antes de adormecer também.