Content on this page requires a newer version of Adobe Flash Player.

Get Adobe Flash player

Content on this page requires a newer version of Adobe Flash Player.

Get Adobe Flash player

Bonecos perfeitos

Produção
de moda

Rui Cardoso Martins

 

 

 

Uma boa colheita

Há dias, numa cerimónia pública, ouvi dum responsável político o discurso total do nosso tempo:
— ... e prometo a todos que, com mais crise ou menos crise, para o ano estaremos aqui para mais uma edição disto... so help me God.
Um Deus-me-ajude que levava às costas uma urgência antiga, ancestral, que há muito eu não ouvia, e a plateia riu bizarra e solene. Dantes as pessoas diziam estas coisas ironicamente. Dizia-se mas não queria dizer isso, só uma brincadeira, vamos lá brincar aos falidos, mas, de repente, a ironia e o sarcasmo económico são interpretados de forma literal. Ninguém pode emprestar dinheiro a um amigo em dificuldades dizendo
— toma lá e não gastes tudo em vinho
sem colocar a hipótese de ofender, de lhe atirar à papa do cérebro, ou ao centro magoado do coração, verdades como punhos e outras relíquias da linguagem. Comemos o pão que o diabo amassou, estou a morrer de fome (mas estou mesmo...), olha aquele não tem dinheiro para mandar cantar um cego, o outro não tem onde cair morto, etc., mas sem mentir. Absurdos verdadeiros, não previstos pelo milagre do crescimento contínuo da globalização ocidental. Gostava de poder evitar ou atrasar isto no mundo que conheço, pois seria muito desagradável. E no que não conheço, mas esse já se habituou, como África. Há muitos anos que não escrevo a pedir ao Pai Natal ou ao Menino Jesus, a última vez que aconteceu devem ter ficado lá fora, ao frio, a discutir a existência e não me deram o que queria. Por que me escutariam agora? Por isso, numa manhã de geada, vi uma figura de cabelo branco na distância e desci ao vale de Chelas por um carreiro escorregadio de lama, caniços altos, e fui falar com um homem das hortas populares de Lisboa. Estava a tratar das couves num rectângulo grande onde também havia feijão, batata, tomate. O ar cheirava a terra molhada, talos de couve, salsa e minhocas, num fundo fértil de ribeira cercado, no alto das colinas, por pilastras de cimento e alguns dos mais feios prédios de Portugal. O senhor Dias, transmontano desempregado (cavava valas na construção, electricidade, telefones, quem me quer agora com esta idade?), confirmou uma das razões do nascimento de Lisboa no fim do vale do Tejo:
— Esta terra é boa, sim senhor.
A horta é ajuda alimentar para ele, para a família, de vizinhos sem dinheiro que lhe pedem legumes, e mesmo daqueles que não pedem, os que à noite vão lá tirar uma couve, uma abóbora, mas, diz o senhor Dias
— Pelo menos não estragam, é mesmo para comer.
De dia, o problema são os pássaros, quando semeia tem de estar vigilante para os afastar, há vizinhos que usam chocalhos. Nos próximos tempos, a Câmara vai dividir aquelas terras por talhões e, espera-se, ajudar mais agricultores pobres da cidade a terem a sua horta. Boa ideia porque o almanaque Borda D’Água para 2011 é um susto. Um ano sob o signo pesado de Saturno, que devorava os filhos: “O Inverno será longo e frio e com pouca chuva. A Primavera será ventosa. O Verão irá ser bastante húmido e o Outono prevê-se seco e fresco. Na agricultura teremos de contar com pouco trigo, azeite, mel e vinho. Em contrapartida haverá abundância de frutas. Nas pessoas as desuniões reinarão e os divórcios proliferarão; na saúde podem-se esperar febres e epidemias não só em Portugal mas um pouco por todo o mundo. Os que nascem neste ano de 2011 terão o rosto grande e feio; os olhos serão inclinados para a terra e assimétricos sendo o nariz grande e largo, os lábios grossos, as sobrancelhas juntas, a pele escura, os cabelos negros e ásperos e os dentes encavalitados e desproporcionados. As mulheres terão peitos volumosos em corpos magros e esqueléticos.” Síntese improvável: o que eu dava ao mundo, em 2011, era estarmos cá todos outra vez, menos o Bin Laden e as pessoas muito más, mais uma grande colheita de bebés bonitos, comida e deus nos ajude, que não é pouco.