1. Mundo
  2. Política
  3. Economia
  4. Desporto
  5. Sociedade
  6. Educação
  7. Ciências
  8. Ecosfera
  9. Cultura
  10. Local
  11. Media
  12. Tecnologia
    1. |
    2. |
    3. |
    4. |
P�blico

Reportagem: Ermelinda quis gritar e gritou o que grita sempre: "Ó carapau!"

15.05.2010 - 21:12 Por Ana Cristina Pereira

  • Votar 
  •  | 
  •  0 votos 

Ermelinda Lapa nem dormiu direito a pensar na vinda do Papa ao Porto. E o homem nem parou em cima da Ponte do Infante - um bocadinho, um bocadinho sequer - para saudar quem com tanto fervor o saudava dentro dos barcos de pesca ou de recreio. A peixeira ficou um nadinha desconsolada: "Ai não!"

Os pescadores da Afurada enfeitaram os barcos de propósito. António Azevedo, o filho de Ermelinda, também enfeitou o seu. O Predador estava um brinco - bandeirinhas dos Super Dragões, a principal claque do FC Porto, de uma ponta à outra; ao fundo, uma bandeira branca com o rosto de Bento XVI estampado.

"Se vier cá uma rainha, um Papa, se for São Pedro, podemos embandeirar os barcos", explicara a mulher, de meias grossas e chinelos pesados, ao saltar para o Predador. "Se fossem os barcos todos pelo rio era bonito, mas muitos estão na apanha - no mar", acrescentara, já ao estender uma manta para se sentar.

O frio cortava na Foz do Douro. Pela força da nortada, na véspera e na antevéspera muitos nem se tinham feito ao mar. E Ermelinda - "66 anos, seis filhos, 12 ou 13 netos" - sempre, sempre contente. Tão contente que, de vez em quando, lhe apetecia soltar um grito. E soltava-o. Soltava o grito que, de canastra à cabeça, lhe sai já sem pensar: "Ó carapau!"

Fizeram-se ao rio às 9h. Bento XVI deveria aterrar dali a 40 minutos em Vila Nova de Gaia, e cruzar o Douro, no papamóvel, a tempo de celebrar a missa, na Avenida dos Aliados, no Porto, marcada para as 10h15. A tentar fazer render o tempo, alguns pescadores levavam redes para consertar rio acima.

As buzinadelas soavam numa ou noutra embarcação de quando em quando. "É para acordar!", ria-se Ermelinda, olhando as margens caladas, vazias. Pararam entre a Ponte D. Luiz I e a Ponte do Infante - entre o metal de uma e o betão da outra, sob o olhar atento da Polícia Marítima. De repente, no ar, os helicópteros - primeiro um, depois outro, depois outro. "Olha o Papa!" "Piiiiiiiiiii!"

António Azevedo teve tempo para prender as bandeiras de boas-vindas e explicar que, se pudesse falar com Joseph Ratzinger, pedir-lhe-ia que falasse com o primeiro-ministro, José Sócrates, para "arranjar um subsídio para a gasolina dos pescadores pequenitos". Só que não viu mais do que a parte superior do papamóvel. O voo do Papa atrasou-se. E, assim, atrasado, não parou um segundo em cima da ponte.

A prima de Ermelinda, Luísa Capota, até chorou: "Gostei muito. Ai! Gostei, gostei." O sucessor de São Pedro, patrono dos pescadores, não parara, mas benzera-os - benzera-a, benzera o marido, benzera o filho, benzera outros familiares e tantos amigos, ao som estridente das buzinas. "Quando o outro veio - o João Paulo II -, eu fui vê-lo passar na Ponte D. Luiz!"

Os homens que subiram e desceram o rio a consertar redes retomaram os trabalhos mal saltaram para o cais da Afurada: "Fui ali a riba e nada vi", suspirava Carlos Rodrigues da Silva. "Estive dois dias sentado a vê-lo na televisão. Ao vivo é outra coisa, mas na televisão vê-se. Estava bastante nortada, aproveitei para o ver. Gosto de ver. A nossa fé é que nos salva."

Quase ninguém se via pelas ruas da cidade àquela hora, quase nenhuma porta se via aberta - era como se a cidade estivesse adormecida, era como se a cidade tivesse fugido: efeitos da tolerância de ponto, que convidara muitos a um fim-de-semana alargado. O som estava quase confinado ao centro, aos Aliados, onde o Papa celebrava missa para milhares de fiéis.

A Tina do Américo, que há 50 anos vende "castanhas e outras miudezas" na Baixa, encomendou 1200 lenços com a frase "Bento XVI bem-vindo ao Porto" bordada ao centro e, com a ajuda da filha e da nora, já os despachara quase todos. Um homem bem se aproximara dela com o crachá "órgão de polícia criminal" a avisá-la de que não podia estar ali, junto à estação de São Bento, a vender aquilo e ela respondera-lhe: "Eu só vendo o que é do Papa!" E, àquela hora, aparecia-lhe outro com a mesma conversa e ouvia a mesma resposta.

O altar fora montado na Praça General Humberto Delgado. E em grande parte da Avenida dos Aliados não parecia caber mais um alfinete. Mas cá em baixo, na Praça da Liberdade, os mendigos circulavam sem dificuldade entre os devotos, em busca da apregoada caridade: uns com chapéu, outros com postais, outros sem nada.

No fim, os lenços de Tina do Américo agitavam-se. Encostada a um poste, Eulália Pereira, serena nos seus 84 anos, observava a multidão a ir, a ir: "Acho que as pessoas se portaram com muito respeito, com muita educação." Lá em casa, na televisão, Ermelinda também via ir, ir: "Não tenho lido muito sobre ele, mas há quem diga que Portugal empatizou com o riso dele."