1. Mundo
  2. Política
  3. Economia
  4. Desporto
  5. Sociedade
  6. Educação
  7. Ciências
  8. Ecosfera
  9. Cultura
  10. Local
  11. Media
  12. Tecnologia
    1. |
    2. |
    3. |
    4. |
P�blico

Reclusão

17.05.2010 - 11:34 Por Paulo Varela Gomes

  • Votar 
  •  | 
  •  0 votos 
Volto neste jornal à questão dos chamados "padres pedófilos", porque, face a vários textos que tenho lido na imprensa portuguesa e estrangeira sobre o assunto, penso que necessita de mais esclarecimento a minha ideia de que o abuso sexual de crianças e jovens, sendo um problema psiquiátrico e criminal, é também o problema de um determinado tipo de instituição dita educativa ou reeducativa, a instituição de reclusão para rapazes. Ou seja, o problema ultrapassa muito as fronteiras da igreja.

A chamada "revolução sexual", iniciada na década de 1960, é o último avatar da modernidade. Muitas instituições da sociedade antiga têm lutado para lhe sobreviver: a família moderna (pai, mãe, filhos) não conseguiu e está a acabar. As forças armadas sobrevivem transformadas em corpos profissionalizados, onde já há mulheres e até homossexuais declarados. As monarquias - e o seu equivalente moderno que é a presidência dos Estados Unidos - aguentaram mal o embate: a princesa Diana ia dando cabo da intocabilidade da realeza britânica e por causa de Clinton a Sala Oval transformou-se num sítio seco e austero, um autêntico templo protestante.

A Igreja enfrenta a Idade Moderna desde Galileu (digamos assim) e a sociedade moderna desde a Revolução Francesa. Conseguiu sobreviver em grande medida graças ao seu enraizamento no Terceiro Mundo, e nos últimos tempos, paradoxalmente, graças à globalização mediática (arrisca-se agora a morrer deste último remédio: os media que fizeram de João Paulo II uma superestrela ameaçam demonizar Bento XVI).

Para a Igreja, a "revolução sexual" é particularmente ameaçadora, sobretudo porque bateu à sua porta, não através da questão do celibato dos padres (afinal de contas, toda a gente sabe que sempre houve muitíssimos padres heterossexuais praticantes), mas através de segredos muito mais fundos e bem guardados.

A resposta da Igreja parece ser a repressão: palavras duras e exclusões. Os leigos, amigos e inimigos da Igreja, preconizam doses ainda maiores de repressão e muitos parecem pensar que o problema são as relações de poder nas instituições da Igreja: controlando o poder indiscriminado de muitos sacerdotes e o segredo que rodeia o seu exercício, acabaria o crime.

Mas se, como eu penso, o problema que está a abalar a Igreja é parte de um problema muito maior, o das instituições de reclusão para rapazes, a repressão não bastará.

Sustento que o funcionamento de uma dessas instituições - os seminários - estará na raiz de muitos dos comportamentos condenáveis de alguns padres e que, portanto, estes comportamentos são muito mais antigos que a memória dos testemunhos que agora vêm a público. É um problema de séculos, não décadas. Os padres que utilizam o seu poder para utilizar sexualmente crianças e jovens foram educados em seminários onde ensinavam outros padres também educados em seminários. Os seminários não são muito diferentes de qualquer outra instituição de reclusão de rapazes (como os reformatórios ou os colégios internos). Em todas estas instituições, há muitos rapazes, em idades turbulentas, entregues a autoridades demasiado autoritárias ou, pior, prontas a aproveitar-se. Há uns anos, uma equipa de televisão confrontava um padre que dirigia uma instituição na qual jovens rapazes praticavam sexo uns com os outros. O padre não era acusado de nada, pelo contrário, procurava controlar os acontecimentos. O repórter (a repórter?) pressionava-o em busca de uma resposta: é preciso fazer alguma coisa! Que medidas tomou o senhor padre? E ele respondeu, à bruta: "Que é que quer que eu faça? Que os cape?" O padre sabia o que tem sido a sexualidade masculina (homo ou heterossexual, tanto faz) desde há milénios, aquilo que a tem distinguido. Nas instituições de reclusão masculinas, a sexualidade torna-se muito exasperada - e o exaspero agudiza-se no caso dos padres pela relação muito difícil que a Igreja mantém com as questões sexuais. Terá sido por isso nos seminários que alguns padres adquiriram a dolorosa e inescapável herança de uma sexualidade simultaneamente proporcionadora de dor, prazer e culpa. Transportam-na depois na sua vida adulta e passam-na, a bem ou a mal, a crianças e jovens colocados à sua guarda.

A todos aos padres prevaricadores se chama pedófilos. Pedofilia é, no essencial, a preferência sexual por crianças, quer dizer, meninos e meninas pré-púberes ou no limite da puberdade. Muitas sociedades aceitaram, e algumas aceitam, a legitimidade das relações de adultos com pessoas muito jovens. Mas, que eu saiba, pouquíssimas sociedades alguma vez admitiram as relações sexuais de tipo adulto praticadas entre adultos e crianças. Mesmo nos sítios onde o casamento infantil é comum, fica muito mal visto e é frequentemente ostracizado o marido que "consuma" o casamento com a sua noiva pré-púbere. As relações sexuais de carácter adulto praticadas entre adultos e crianças são uma actividade desviante, considerada um crime face às leis dos deuses e dos homens. Portanto, aquilo a que chamamos "padres pedófilos" é um saco demasiado grande: cabem lá dentro os que o são, outros que não o são e outros que não sabemos. São todos condenáveis? Sim, pelo juramento que fizeram e pelo modo como abusam do seu poder temporal e espiritual sobre pessoas á sua guarda. Mas não são idênticas as circunstâncias que os distinguem e não se pode perceber o problema sem ter isso em consideração, quando se pensa em instituições como o seminário ou o reformatório.

A questão da educação do clero não parece importar a todos aqueles (e são muitos) que têm destas questões um ponto de vista apenas policial ou legalista (são, por exemplo, os que acham que Roman Polanski foi pedófilo). E sobretudo aqueles que vêm defendendo que as pessoas têm uma "orientação" sexual fixada desde o nascimento e que, portanto, o homossexual nasce homossexual, o pedófilo nasce pedófilo. Mas os humanos são omnissexuais e aquilo que os leva a optar (ou serem "optados") por este ou aquele caminho, inclusivamente o das pedofilias, não está escrito no céu ou no cérebro. Mas está inscrito na fábrica da infância, pronto a ser qualquer coisa ou nada, conforme as circunstâncias em que o adulto se vier a encontrar. Se essas circunstâncias forem um certo tipo de instituições masculinas de reclusão...

O carrossel sem fim do abusador que foi abusado não será detido pela repressão. Comece a Igreja por reformar (extinguir?) os seminários. Perceba que a "revolução sexual" não tem remédio, que haverá padres heterossexuais e homossexuais, padres casados e padres solteiros, que as mulheres deverão poder aceder ao sacerdócio. Comece a Igreja por descomprimir, pluralizar e suavizar a vida eclesiástica. Se não o fizer, pode estar a entrar no último período da sua existência enquanto instituição essencial em muitas sociedades.

Historiador