1. Mundo
  2. Política
  3. Economia
  4. Desporto
  5. Sociedade
  6. Educação
  7. Ciências
  8. Ecosfera
  9. Cultura
  10. Local
  11. Media
  12. Tecnologia
    1. |
    2. |
    3. |
    4. |
P�blico

Progresso e religião

12.05.2010 - 14:38 Por Nicolás F. Lori

  • Votar 
  •  | 
  •  2 votos 
Num artigo recente de opinião no New York Times faz-se uma afirmação que a muitos promotores do "progresso" em Portugal pareceria chocante: diz-se que o que falta à cultura secular é a religião. A afirmação não é feita por uma pessoa religiosa, mas por um ateu secular e proeminente filósofo, Jürgen Habermas.

Nos seus trabalhos iniciais, Habermas deu-nos conta da sua convicção de que o papel estruturante que a religião tinha desempenhado na sociedade seria no futuro feito através de uma ética discursiva, onde a melhor resposta seria obtida através do consenso. Mas para o actual Habermas, o racionalismo falha no sentido em que não tem nenhum mecanismo para tomar consciência dos "interesses" que estão sempre presentes, com as suas implicações, mas que não são reconhecidos. Esta situação causa um problema: os Estados seculares não conseguem que os seus cidadãos se afastem do egocentrismo em direcção a comportamentos mais virtuosos.

Quando se fala do diálogo entre a fé e a razão, começa-se muitas vezes mal, quando se diz que o seu sentido é extremamente vago. O que tipicamente se está a fazer é a assumir que a fé é um estado de enamoramento com o transcendente, entendendo-se por fé o "amor que inclui o transcendente". Esta visão da fé, que penso ser a definição que as pessoas comummente usam, não é o que introduz a falta de claridade na discussão. A expressão é pouco clara, porque não explica se o diálogo é entre o amor e a razão e/ou entre o transcendente e a razão. Entendemos por razão o pensamento que tenta interpretar o universo através da dinâmica causa-efeito, sendo as causas as razões que a razão utiliza. Penso também que esta é a definição tipicamente utilizada. Uma outra definição de razão, que é menos comum mas que é muito utilizada na economia, considera não uma dinâmica causa-efeito mas uma dinâmica de efeito-causa, onde a razão tenta encontrar a causa que proporciona o efeito pretendido, sendo esse efeito a real razão da acção. A utilização destas duas definições divergentes para representar dois fenómenos muito diferentes é um defeito da linguagem comummente utilizada, porque, na prática, apenas a segunda deveria ser chamada racional (algo com o correcto balanço/ratio económico), sendo a primeira chamada "razoável" (algo que tem uma razão). Discriminando estes dois termos, podemos dizer que a razão é razoável, mas também que o amor que baseia a sua esperança no que vai acontecer e não no que aconteceu é fundamentalmente racional. O bem que o amor busca não é o dinheiro, como acontece na economia. O transcendente confronta-se com o racional no sentido de que é infinito e, por isso, não é passível de ser considerado uma utilidade. O transcendente confronta-se com o razoável no sentido de que é espontaneamente não causado, e por isso não razoável. O confronto dá-se pois entre os três elementos do triângulo: razão, amor, transcendente.


Kant considerou o conflito entre a razão e o desejo humano como a possibilidade da realização do amor e considerou-o intransponível para a prática, uma vez que tal realização necessita da existência da possibilidade de liberdade de acção, o que para ele seria incompreensível. Para que o transcendente liberte o ser humano das algemas de um futuro completamente determinado pelo passado onde o espírito humano não tem lugar ou importância, é necessário que esse transcendente limite a razoabilidade do universo e eleve a sua racionalidade. Ou, em outras palavras, que esse transcendente seja poderoso e bom. O poder do transcendente apareceria para um observador como sendo a aleatoriedade não controlável através de processos causais, e a sua bondade apareceria como uma tendência da evolução a trazer mundos cada vez melhores. Mas para que essa liberdade trazida por um transcendente poderoso e bom possa ser considerada compatível com a livre vontade é necessário, e suficiente, que essa liberdade que ocorre numa pessoa seja aquilo que constitui a individualidade dessa pessoa. Ou seja, que se considere que é o transcendente que possibilita a individualidade da pessoa. A função da religião na sociedade é pois não a busca da fé mas a religação de cada um de nós à importância do transcendente na nossa vida, e mesmo depois. Consiste em religarmo-nos, que assim aparece como a fonte da possibilidade de um equilíbrio entre a razão e o amor que é o transcendente. Para que tal aconteça, torna-se necessário um enorme esforço para que nos tornemos indiferentes às causas da razão e aos objectivos do amor. Esta busca da indiferença é, apesar das diferenças entre elas, comum a todas as grandes religiões da Terra (e.g. cristianismo, islão, hinduísmo e budismo). É este religar, segundo Habermas, que a razão secular não consegue realizar, porque essa razão é cega à sua própria necessidade de ter razões que não podem ser alcançadas por observações do passado. Esta foi a cegueira vista por Saramago, mas o que Habermas afirma é que a cegueira não é causada pela religião mas pela sua ausência.

Professor universitário