Na altura em que Bento XVI foi eleito, em Abril de 2005, previ que "dificilmente" o seu papado seria o de um mero continuador de João Paulo II. Cinco anos depois, e quando se prepara para visitar pela primeira vez Portugal como chefe da Igreja de Roma, é claro para todos que o Papa alemão não procurou ser o que não era - um líder carismático, à imagem do seu antecessor -, antes não descurou a reorganização da Igreja, centrando-a nos combates mais importantes da actual pós-modernidade.
Horas antes de se iniciar o Conclave que o escolheria como sucessor de Pedro, o então cardeal Ratzinger proferiu, como decano do Colégio dos Cardeais, uma homília que se tem vindo a revelar todo um programa. "Possuir uma fé clara, seguir os ensinamentos da Igreja, é classificado com frequência como fundamentalismo", disse então, perante os 115 cardeais eleitores. "Em contrapartida, o relativismo, isto é, o deixar-se levar "para aqui ou para ali por qualquer vento ou doutrina" parece a única atitude aceitável nos tempos que correm. Toma corpo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa tudo ao critério do próprio ego e dos seus desejos".
Ao definir o relativismo moderno como o maior adversário contemporâneo do humanismo cristão, lembrou que "ser-se adulto" significa ter uma fé que não segue atrás das ondas das modas de hoje ou das últimas novidades". E por isso, apesar das mudanças que tem vindo a introduzir na Igreja - nomeadamente na dolorosa e delicada frente da denúncia e prevenção dos casos de pedofilia, onde tem sido de uma grande pro-actividade -, Bento XVI nunca se deixou levar pelo vento que, a espaços, foi soprando mais forte em diferentes direcções.
Ora o relativismo moderno não é apenas adversário do humanismo cristão - coloca também enormes desafios ao tipo de sociedades em que vivemos, livres e abertas porque baseadas num contrato de confiança entre todos os cidadãos que partilham um corpo de valores civilizacionais. Tal sucede porque o relativismo moderno dissolve esses valores sem deixar qualquer alternativa no seu lugar.
Quando Bento XVI critica, por exemplo, o niilismo ou o multiculturalismo, fá-lo a partir de um terreno que partilha com todos os que se preocupam com o deslaçamento e a inumanidade prevalecentes em muitos aspectos das sociedades contemporâneas.
O multiculturalismo não é uma forma de tornar as nossas sociedades mais plurais, pois não parte da necessária base comum a qualquer convivialidade, antes do esbatimento dos valores preexistentes. Por isso, ao criar um lugar vazio e sem referências, o multiculturalismo nunca poderá ser um ponto de encontro, antes de desencontros e mal-entendidos. E o niilismo anda naturalmente de braço dado com o multiculturalismo, sobretudo se pensarmos que este corresponde, de acordo com a definição de Leo Strauss, a não querer nada, não valorizar nada.
A crítica de Ratzinguer/Bento XVI tanto ao multiculturalismo como ao niilismo, onde as referências teológicas não impedem o recurso a grandes pensadores da liberdade e das sociedades abertas, como Karl Popper ou Isaiah Berlin, centra-se no que designa como a diminuição da "energia moral" nas nossas sociedades. "A segurança, de que necessitamos como pressuposto da nossa liberdade e da nossa dignidade, não pode vir, em última análise, de sistemas técnicos de controlo, mas apenas da força moral do homem: onde esta faltar, ou não for suficiente, o poder que o homem possui cada vez mais se transformará num poder de destruição", pode ler-se num dos seus textos.
Homem que conheceu, na sua Alemanha, o horror de um despotismo ateu - o nazismo - e que enfrentou, na universidade onde ensinou, os excessos do idealismo político dos anos 60 e 70 - que por vezes desembocaram no terrorismo -, Bento XVI defende que o moralismo político contemporâneo é "um moralismo de sentido errado, porque privado de uma serena racionalidade" e porque coloca com frequência "a utopia política acima da dignidade de cada homem".
Depois da derrota das ideologias que proclamavam a existência de um moralismo político absoluto e insusceptível de contestação, a nova fronteira do debate transferiu-se para estes terrenos que, se muitos proclamam vazios e sem referências, são na realidade um terreno propício às ambições políticas mais desenfreadas. Ambições que, como se viu com o nazismo, como se viu com o comunismo, lidam muito mal com uma qualquer autoridade exterior à área da política e do poder. Do "seu" poder.
Uma forma moderna dessa intolerância é o laicismo radical, "adversarial", isto é, aquela forma de olhar para a separação entre o Estado e a Igreja que não é neutra em relação aos diferentes credos, antes procura ocupar o seu espaço e, por isso, os combate. É um laicismo que, tal como sucedeu durante a I República com a Lei da Separação, não visa separar o que é de César do que é de deus, antes submeter o que é de deus aos desígnios de César.
Naturalmente que a originalidade radical do Cristianismo face a outras religiões monoteístas é incorporar essa separação desde a sua origem e, no caso do catolicismo, de manter um autoridade única, central e separada, capaz de ler os sinais dos tempos sem ser escrava das modas, o que é insuportável para os que cultivam o racionalismo sem concessões. No caso concreto de Bento XVI, as suas encíclicas e a notável lição preparada para ser lida na Universidade de Roma La Sapienza incomodam ainda mais por nelas se defender não só a pacífica coabitação entre fé e razão como - e cito Giorgio Israel, professor de História da Matemática - que "a fé não cresce a partir do ressentimento e da recusa da modernidade". Mais: por se defender que "o perigo do mundo ocidental é que o homem, obcecado pela grandeza do seu saber e do seu poder, esqueça o problema da verdade. E isto significa que a razão, no fim do dia, acabará por vergar-se às pressões dos interesses e do utilitarismo, perdendo a capacidade de reconhecer a verdade como critério único".
Por isso, como notou Ernesto Galli della Loggia no Corriere de la Sera, o gesto dos professores que impediram a ida de Bento XVI à La Sapienza, tal como o dos nossos furiosos "laicos", traduz sobretudo "uma laicidade oportunista, alimentada por um cientismo patético, arrogante na sua radicalidade cega".
O tímido Cardeal Ratzinger, que tímido não deixou de ser depois de ser eleito Papa, não se desviou da linha que, lida à distância, a sua homília pré-conclave traçava. Talvez também por isso, apesar de lidar melhor com as ideias diferentes do que o próprio João Paulo II, não tenha conseguido escapar ao estereótipo que, antes do mais, visa dar dele uma imagem caricatural e preconceituosa. Até porque o que Bento XVI diz incomoda mesmo os teólogos destas "novas" verdades reveladas, pois poucos, num lugar de poder como o dele, diriam humildemente que mesmo um Papa em Roma não existe para "impor a Fé de cima, pois esta é antes do mais um dom da liberdade".
E não há dúvida que é.
Talvez por isso mesmo eu, que não tenho fé, termine lembrando que, pouco tempo antes da morte de João Paulo II, numa conferência na Escola de Cultura Católica de Santa Croce, em Bassano, o ainda cardeal Ratzinger propôs a inversão do axioma dos iluministas de acordo com o qual era possível definir as normas morais essenciais etsi Deus non daretur, como se Deus não existisse, para passar a propor que "mesmo aqueles que não conseguem encontrar o caminho da aceitação de Deus deveriam procurar viver e orientar a sua vida veluti si Deus daretus, como se Deus existisse". Lembrou então que esse fora o conselho de Pascal aos seus amigos não-crentes, considerando que, assim, "ninguém fica limitado na sua liberdade, mas todas as nossas coisas encontram o apoio e o critério de que têm urgente necessidade".
Como alguém que se reconhece nos valores de uma Europa que, como Bento XVI correctamente defende, não é apenas um lugar geográfico mas o produto de uma civilização, e que a matriz dessa civilização é o Cristianismo (sem o qual não teria sido sequer possível o Iluminismo), aceito este desafio. Mais: nesse desafio marco encontro com Bento XVI e com a sua luta civilizacional, que é também minha.
Jornalista