De repente, a liderança da Igreja Católica aparenta fragilidade, entre decisões solitárias do Papa e maus conselhos que ele andará a receber.
Em 2006, muçulmanos vêm para a rua protestar contra Bento XVI. Em Janeiro deste ano, judeus e muitos católicos irritam-se com o levantamento da excomunhão de quatro bispos integristas, ligados ao grupo conservador Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Em ambos os casos, estamos perante duas decisões solitárias do Papa Ratzinger. Em ambos os casos, as posteriores explicações tardam em sossegar os ânimos. No último, sucedem-se zangas contra o Papa, críticas no topo da hierarquia, revoltas de grupos católicos. De tal modo que, em meados de Março, Bento XVI sente-se obrigado a escrever uma carta a todos os bispos num tom magoado, explicando a decisão. Ainda o episódio dos lefebvrianos não arrefecera e já na Áustria se levantam outras vozes (incluindo do clero) contra o Vaticano. Em causa está a nomeação de um padre conhecido pelas suas posições polémicas e conservadoras. No Brasil, estala outro caso, no início de Março: o arcebispo de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, excomunga a família e os médicos que fizeram o aborto a uma menina de nove anos, grávida do padrasto que a violava. Os problemas dos últimos meses estão a ser para o Papa uma espécie de Via-Sacra, o caminho (com várias estações) que Cristo percorreu, a caminho da morte, no dia que os cristãos hoje celebram.
1.ª estação
O Papa é condenado pela crise que se instala Já ninguém – nem bispos nem cardeais – evita a palavra: há uma crise instalada. Em Itália, o jornal La Repubblica é agreste no diagnóstico: “Uma cúria fora de controlo, um Papa fechado no seu palácio e obrigado a enfrentar um furacão que L’Osservatore Romano, o jornal da Santa Sé, descreve como sem igual em tempos recentes. Quatro anos depois de ser eleito, Bento XVI enfrenta uma crise crucial no seu pontificado”. Um Papa sozinho? O Repubblica diz que sim. Quando estalou o episódio do bispo negacionista, vários outros comentários apontavam a solidão de Ratzinger como um factor que ajudava a explicar alguma desorientação. O secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcisio Bertone, respondendo ao jornal, diz: “O Papa não está só, todos os seus colaboradores mais próximos lhe são fiéis e estão profundamente unidos a ele”. Na recente viagem a África, interpelado na conferência de imprensa a bordo do avião, Bento XVI responde: “Dá-me alguma vontade de sorrir esse mito da minha solidão: de modo algum me sinto só. Todos os dias recebo os colaboradores mais estreitos (...), todos os dias recebo bispos (...); também [padres] da Alemanha vieram recentemente por um dia, para falar comigo...”. O biógrafo oficioso de João Paulo II, o norte-americano George Weigel, ele próprio um defensor de Bento XVI, escreveu recentemente na revista First Things que, no Vaticano, há “caos, confusão e incompetência”. Mas será essa a explicação?
2.ª estação
O Papa está só e também não tem ajuda O que está a acontecer, afinal, no Vaticano? Uma das respostas: o Papa João Paulo II reunia regularmente todos os chefes dos organismos da Cúria Romana. Deixou de o fazer só quando a saúde piorou. Bento XVI, que lhe sucedeu em Abril de 2005, praticamente não o fez até hoje, como diz ao P2 uma fonte bem colocada no Governo do Vaticano. O Papa Ratzinger prefere reunir-se, quando necessário, com cada responsável do Governo central da Igreja Católica. Outra razão apontada: Ratzinger é um teólogo e um intelectual, que gosta de ter tempo para ler e escrever. Para agravar a questão, pela primeira vez em século e meio, nem ele nem o seu secretário de Estado, Tarcisio Bertone, são oriundos da carreira diplomática do Vaticano. Bertone foi o vice de Ratzinger, durante anos, na Congregação para a Doutrina da Fé e é especialista em Direito Canónico. O que sugere impreparação para lidar com questões mais delicadas. O secretário de Estado passa ainda muito tempo a viajar, cuidando pouco do Governo executivo que lhe compete. O problema não está nas viagens, dizem observadores, mas na aceitação de convites menores para uma pessoa com aquele cargo. Também o facto de Bertone ser salesiano e canonista e ter escolhido outros salesianos e canonistas para responsabilidades na Cúria – Angelo Amato, na Causa dos Santos, Raffaele Farina, na Biblioteca Vaticana, Agostino Vallini, como vigário de Roma – não é bem visto por sectores da Cúria Romana. Por estas razões, há vozes que já falam na necessidade de Bertone dar o lugar a outra pessoa. Bento XVI não só não reúne com os seus ministros como são raríssimas, desde que foi eleito, as audiências pessoais com bispos. A maior parte deles tem apenas direito a dois ou três minutos após as audiências gerais das quartas-feiras. Tarefa na qual o Papa gasta perto de uma hora. Mais uma explicação: as decisões solitárias alegadamente tomadas por Bento XVI. É o caso não só do levantamento da excomunhão aos integristas como também da conferência em Ratisbona (Alemanha), em Setembro de 2006, que colocou em fúria meio mundo muçulmano. No discurso que irritou os fiéis do islão, o Papa dizia o contrário do que muitos entenderam. A citação que fez do imperador Manuel II Paleólogo (1348-1425) – “Mostra-me então o que Maomé trouxe de novo. Não encontrarás senão coisas más e desumanas, tal como o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava” – caiu mal em vários países muçulmanos. Quando, dois meses depois, vai à Turquia e entra na Mesquita Azul, o Papa tenta mostrar o seu respeito pelos muçulmanos, murmurando uma prece voltado para Meca, num discreto gesto de oração à maneira islâmica. Encontros sucessivos com representantes muçulmanos – que culminam com uma reunião no Vaticano, em 2008 – tentam “colar” os estragos feitos.
3.ª estação
O Papa cai na armadilha integrista No dossier dos integristas, há um claro envolvimento pessoal de Bento XVI, que já acompanhara o caso em 1988, quando se deu a ruptura do então arcebispo Marcel Lefèbvre com João Paulo II. Na altura, o então cardeal Ratzinger falou várias vezes com o homem que criticava a doutrina do Concílio Vaticano II (1962-65), nomeadamente a que se refere à liberdade religiosa e ao diálogo ecuménico. Ratzinger chegou a negociar e a assinar com Lefèbvre, a 5 de Maio de 1998, um protocolo que mantinha os dissidentes dentro da Igreja Católica, com condições. Nas semanas seguintes, os integristas acrescentaram novas exigências, às quais João Paulo II disse que não. O Papa Wojtyla envia ainda uma carta onde manifesta a sua “viva e profunda aflição” com a possibilidade da ruptura, mas Lefèbvre não se detém. A 30 de Junho, ordena os quatro bispos que lhe garantem a sucessão – mas que, sem autorização do Papa, significam excomunhão automática. Ratzinger não estava de acordo e teria querido evitar, até à última, o rompimento, como recordou Carlo Marroni no Il Sole 24 Ore. Aceita o desenrolar dos acontecimentos, tendo em conta a teimosia de Lefèbvre e a resolução final de João Paulo II. Investido agora no lugar de decisão, Bento XVI tudo faz, desde pouco depois da sua eleição, para que os lefebvrianos voltem ao rebanho. Resumindo a história: o Papa cedeu no rito, autorizando que a missa possa ser celebrada no rito anterior ao Concílio. Cedeu ainda ao levantar a excomunhão aos quatro bispos (Lefèbvre morreu em 1991), incluindo Richard Williamson, que nega o Holocausto. Com isso, arranja uma polémica com os judeus e irrita muitos católicos que não entendem a vontade de aproximação a um grupo que teima em não aceitar o Vaticano II. E em troca? O superior da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (nome que o grupo adoptara quando foi fundado, em 1970), Bernard Fellay, reiterou já que os integristas não estão prontos a reconhecer a doutrina do Concílio – uma das exigências do Vaticano. E Williamson deu uma bofetada de luva branca ao Papa ao não aceitar retractar-se. Na mesma ocasião, afirmou que precisava de estudar melhor o Holocausto para ver se, afinal, morreram mais que os “200 mil ou 300 mil judeus nos campos de concentração” (e “nem um só nas câmaras de gás”) que ele até agora contabilizara. Não era a primeira vez que Williamson dizia, sobre o Holocausto, o que repetiu em Janeiro à televisão sueca. Várias outras afirmações suas eram conhecidas na Internet. O que levaria Bento XVI a escrever, em tom magoado, a carta que dirigiu aos bispos, divulgada a 12 de Março. Nela, aparece um Papa ferido pelas críticas e, na leitura de alguns, isolado. No futuro, dizia, a Santa Sé deve “prestar mais atenção” às informações que circulam na Net. As irritações dos judeus são o pior para um Papa que, enquanto teólogo, defende a filiação judaica do cristianismo. E que foi ao ponto de cancelar, mal foi eleito, a beatificação (já marcada por João Paulo II) de um padre que, no século XIX, assumia posições anti-semitas. No processo dos integristas, o Papa parece ter tido apenas um apoio: o do cardeal Dario Castrillón Hoyos, que, desde 2006, preside à comissão Ecclesia Dei, criada por João Paulo II para dialogar com os integristas. E que, como convém, tem sido presidida por cardeais mais conservadores. Outros, próximos de Ratzinger, não poupam nas críticas: o também alemão Walter Kasper, que preside ao Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, sente-se ultrapassado. O arcebispo de Viena, Cristoph Schonborn, amigo pessoal de Ratzinger, afirma que as coisas vão mal no Vaticano. E o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, diz ao jornal La Croix que a comunicação não funcionara bem. Já na semana passada, na abertura da assembleia plenária dos bispos franceses, o seu presidente e arcebispo de Paris, cardeal André Vingt- Trois, afirma ter havido uma “insuficiente preparação do levantamento das excomunhões”. “Disfuncionamentos evidentes”, diz o cardeal parisiense, que provocaram “tristeza” e “decepção” na Igreja francesa, dissipada pela carta do Papa aos bispos.
4.ª estação
O Papa é crucificado na viagem a África As viagens até têm corrido genericamente bem ao Papa Ratzinger. Nos Estados Unidos, há um ano, Bento XVI impressionou ao encontrar-se, extraprograma, com vítimas dos abusos sexuais de membros do clero. Em Setembro, em França, foi ao núcleo da cultura francesa falar de laicidade positiva, um conceito caro ao actual Presidente Nicolas Sarkozy. Este ano, a primeira incursão ao continente africano corre mal – pelo menos, mediaticamente. No voo que o leva aos Camarões e Angola, a 17 de Março, o Papa deixa cair uma frase polémica sobre o preservativo: este pode “aumentar” os problemas da sida, diz. Teria sido mal aconselhado, sugerem alguns: já antes, o cardeal López Trujillo, presidente do Conselho Pontifício para a Família, afirmara que o preservativo não é eficaz contra o vírus da sida, pois este é “450 vezes menor que o espermatozóide”. É verdade que o Papa começa por dizer o que poucos citam: “A realidade mais eficiente, mais presente em primeira linha na luta contra a sida é precisamente a Igreja Católica, com os seus movimentos”. Depois, a afirmação polémica: “Diria que não se pode superar este problema da sida só com dinheiro, mesmo se necessário; mas, se não há a alma, se os africanos não ajudam [assumindo a responsabilidade pessoal], não se pode superá-lo com a distribuição de preservativos: ao contrário, aumentam o problema”. Finalmente, os caminhos de solução, que também quase ninguém refere: “Primeiro, uma humanização da sexualidade, isto é, uma renovação espiritual e humana que inclua um novo modo de comportar-se um com o outro; segundo, uma verdadeira amizade também e sobretudo pelas pessoas que sofrem”. Jornais, rádios, televisões e sítios de Internet reduzem a afirmação a um título e sublinham-no à exaustão: o preservativo agrava a sida. Durante os cinco dias seguintes, quer nos Camarões quer em Angola, o Papa fala de corrupção, respeito pelos direitos humanos, combate à pobreza, necessidade de democracia, depredação dos recursos do continente, fim das guerras em África. Alguém notou? A maior parte dos média não. Alguns ignoram mesmo olimpicamente tudo o que se passa na viagem, publicando apenas duas ou três peças sobre o preservativo (também houve o contrário: no dia em que a notícia era o anticoncepcional, havia sites católicos onde não se falava do tema, substituído pela referência de Bento XVI à figura de São José...) E, sobretudo, não reparam noutra chamada de atenção do Papa Ratzinger, em relação à necessária “dignidade” e contenção da alegria na liturgia africana. A verdade é que o Papa dera o flanco, não insistindo nos mais de mil projectos que instituições católicas desenvolvem, só em África, de apoio a doentes de sida. E, apesar de insistentemente o Vaticano pedir, em reuniões internacionais, acesso grátis aos medicamentos de combate à doença, os responsáveis católicos reduzem a questão quase sempre à oposição ao preservativo... E as agências e televisões internacionais esfregam as mãos com o sound byte garantido pela enésima condenação do preservativo... Quando termina a viagem, L’Osservatore Romano faz mais uma edição das palavras do Papa: publica um texto em que admite – embora relativizando – alguma eficácia do preservativo. Em declarações à AFP, o jornalista italiano Sandro Magister, do L’Espresso e autor do blogue www.chiesa.espressonline. it, nota: “É preciso sublinhar que, no terreno, a Igreja não põe qualquer obstáculo à distribuição dos preservativos e que não obtém nenhum resultado concreto com a sua condenação do preservativo. Dizer que a Igreja tem responsabilidade na epidemia está destituído de fundamento”. Bento XVI foi criticado por ministros e responsáveis internacionais – incluindo o Parlamento belga, na semana passada. Mas, aqui, o Papa não esteve só: além do apoio de instituições e personalidades católicas, recebeu também o de vozes inesperadas como Edward Green, director, na Harvard School, do Projecto de Prevenção da Sida da Escola de Saúde Pública e do Centro de Estudos para a População e Desenvolvimento. Apresentando-se como um cientista laico e socialmente “liberal”, Green escreveu na semana passada um texto no Washington Post significativamente intitulado Talvez o Papa tenha razão. “Na verdade, várias provas empíricas apoiam o Papa”. O cientista cita um estudo do Programa da ONU para a Sida em 2003, que concluiu não ser evidente que o preservativo sirva como meio de prevenção primária do HIV em África. A Onusida “renegou discretamente o estudo”, mas artigos em outras publicações como a Lancet ou a Science “confirmaram-no”. Na Science, num artigo publicado no ano passado, 10 especialistas em sida concluíram que a distribuição maciça de preservativos “não conduziu” a resultados que se vissem na África subsariana. O preservativo resultou em países como a Tailândia e Camboja, acrescenta Green, onde o HIV se transmite através do sexo comercial. Green, que se multiplicou em entrevistas nos últimos dias, apresenta razões culturais, entre as quais as relações poligâmicas, para que tal suceda. O que resultou, acrescenta, foi a fidelidade monogâmica ou, pelo menos, a redução do número de parceiros sexuais. Campanhas no Uganda e, mais recentemente, no Botswana e Suazilândia insistem no desencorajamento da promiscuidade sexual, afirma. E conclui que é “seguramente” altura de começar a prevenir de outros modos a sida em África.
5ª estação
O Papa não é consolado nem pelos seus Na Áustria, aparece outro caso que mina a credibilidade do Vaticano – e de Bento XVI: em Janeiro, o padre Gerhard Wagner é nomeado bispo auxiliar de Linz. Wagner era conhecido por ter dito que o tsunami de 2004 ou o furacão Katrina eram castigos divinos, que os livros de Harry Potter são satânicos e que a homossexualidade é uma doença curável. As reacções de fiéis, padres e bispos austríacos não se fazem esperar: nem pensar em tal bispo. A reacção pública do episcopado foi especialmente dura: “O Papa tem certamente liberdade de nomear os bispos”, escrevem, citados pela AFP, mas “os procedimentos previstos pelo direito canónico para a selecção e exame dos candidatos não são válidos senão quando são realmente respeitados”. Ou seja, há normalmente três nomes apontados pelo núncio apostólico do país e por outros bispos. Dessa trina, como é designada, sai o escolhido. Outro problema de fundo: deve a escolha continuar a ser feita assim ou passar a dar uma voz decisiva às comunidades de crentes? E, para um número cada vez maior de católicos, a cidadania que exercitam em outros campos sociais deve ser replicada no interior da Igreja. No caso concreto, o padre desistiu de ser bispo. O Vaticano teve que aceitar a decisão.
6.ª estação
O Papa com a cruz da divisão e do escândalo Mais dissensões na hierarquia. É o que mostra a história da menina de nove anos do Brasil, violada pelo padrasto e que ficou grávida de gémeos. O arcebispo do Recife, José Cardoso Sobrinho, decide excomungar os médicos e a família da criança, depois de esta ter abortado. Escândalo maior para muitos: Sobrinho é o sucessor do carismático Hélder Câmara (conhecido pela sua defesa dos mais pobres), que morreu, fará em Agosto 10 anos e cuja herança o actual bispo destruiu rapidamente. Depois do apoio inicial do cardeal Giovanni Battista Re – os gémeos abortados eram “duas pessoas inocentes que tinham direito de viver”, afirmou –, o arcebispo Rino Fisichella, presidente da Academia Pontifícia Pró- Vida, escreve um texto, no L’Osservatore Romano, muito crítico para com o bispo brasileiro: a decisão do bispo foi apressada e o profissionalismo médico não deve ser condenado antes de considerado o conflito interior. “Antes de pensar na excomunhão, era necessário e urgente salvaguardar sua vida inocente e recolocá-la num nível de humanidade da qual nós, homens de Igreja, devemos ser anunciadores e mestres. Assim não foi feito e, infelizmente, a credibilidade do nosso ensinamento sofre com isso, pois aparece aos olhos de muitos como insensível, incompreensível e sem misericórdia”, aponta o presidente da Academia Pró-Vida. Fisichella não está só: os bispos franceses mostram-se escandalizados com Sobrinho e a liderança da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil também condena o estupro e a violência sexual exercida sobre a menina. E lamenta que o caso “não tenha sido enfrentado com a serenidade, a tranquilidade e o tempo necessário que a situação exigia”. O bispo do Recife não gosta da crítica de Fisichella e acusa o responsável do Vaticano de falar do que não sabe: a família e a criança-mãe foram acompanhadas diariamente pelo pároco. E desmente que se tenha pensado “em primeiro lugar” na excomunhão. Outra crise com desenvolvimento na semana passada: o Papa nomeou uma comissão para inquirir o que se passava com os Legionários de Cristo e a vida privada do seu fundador, padre Marcial Maciel Degollado, que morreu no ano passado, com 87 anos. Em Fevereiro, os Legionários tiveram que admitir que o padre Maciel tivera uma filha. Os Legionários, com uma presença forte no México e uma universidade em Roma, têm investido na formação de clero latino-americano com a missão de contrariar a intervenção mais social da Igreja ligada à corrente da teologia da libertação. Agora, o Vaticano quer conhecer a fundo o que se passa nas instituições do grupo. Antes de o padre morrer, o Vaticano obrigara-o a deixar o seu ministério, depois de alegações de que Maciel teria cometido abusos sexuais contra seminaristas. Em Fevereiro, o jornal espanhol El Mundo e o www.religiondigital. com publicaram uma reportagem segundo a qual a filha de Maciel é espanhola, vive em Madrid e está interessada na herança do padre. Como Maciel não deixou bens em seu nome, os Legionários arriscam-se a ter que dividir bens do movimento com a herdeira física do seu fundador.
Epílogo
Uma ressurreição? E depois das tempestades vem a bonança? Presente em várias destas crises através de posições públicas, o movimento internacional Nós Somos Igreja coloca a questão do modelo de governo da Igreja Católica: “O problema não é a pessoa do Papa, que respeitamos. O problema é a presente estrutura do papado”, afirmou Vittorio Bellavite, porta-voz do movimento para Itália, em declarações ao Ecumenical News International. No seu blogue, Sandro Magister notava há dias que, apesar da sucessão de crises, Bento XVI contínua a merecer a confiança das massas, facto provado pela viagem a África e por uma sondagem em Itália. A razão: “Fala de Deus a uma humanidade que busca quem a oriente”. Popularidade e presença de Deus são, então, os segredos do pontificado de Ratzinger, diz Magister. Popularidade nas diferentes viagens – incluindo em países como Estados Unidos e França – ou aos domingos na Praça de São Pedro, “cada vez mais cheia”. Popularidade que não significa que as pessoas façam, no campo moral, o que o Papa diz: uma sondagem no Repubblica, publicada a 25 de Março – dois dias depois do regresso de África –, dizia que três em cada quatro pessoas estavam contra a afirmação do Papa acerca do preservativo. Apesar disso, a popularidade era atestada por outra resposta: 58,1 por cento das pessoas confiam “muito” ou “muitíssimo” na Igreja e 54,9 confiam em Bento XVI – números mais altos que há um ano. A Igreja oferece “certezas a uma sociedade insegura, em busca de referências e valores”, comentava o sociólogo Ilvo Diamanti, autor da sondagem, no jornal. Daí que 90 por cento das famílias italianas destinem os 0,8 por cento do imposto sobre os rendimentos à Igreja Católica. Sandro Magister conclui que a popularidade do Papa vem da prioridade explicada por Bento XVI na carta aos bispos a propósito dos integristas: “Tornar Deus presente neste mundo e abrir aos homens o acesso a Deus, (...) cujo rosto reconhecemos no amor levado ao extremo” – o da morte de Jesus, que nesta Sexta-Feira Santa os cristãos celebram. No livro-entrevista Colóquios Nocturnos em Jerusalém (ed. Gráfica de Coimbra), o cardeal Carlo Maria Martini, ex-arcebispo de Milão e um dos nomes falados como hipótese para suceder a João Paulo II, diz: “Sim, desejo uma Igreja aberta, uma Igreja cujas portas estejam abertas à juventude, uma Igreja com horizontes vastos. (...) A Igreja tem necessidade de reformas internas. A força para a renovação tem que lhe vir de dentro.” O padre Joaquim Carreira das Neves, biblista, diz ao P2 que sentiu com a viagem a África alguma comunicação social a querer “fazer escândalo” e “atacar” o Papa e a Igreja. Mas esta não tem tratado bem a sexualidade e há “um voltar atrás”. Para este Papa, observa, serem “muitos ou poucos católicos” não é o problema, o problema é “ser-se católico com a verdade e o dogma”. Pior de tudo, observa, é que há “um cisma doutrinal em surdina”: há católicos que têm uma grande fé e que não fazem o que a doutrina indica, pelo menos no campo da moral privada. “Já não sei onde está uma e outra Igreja”, desabafa. Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix de Araguaia (Mato Grosso, Brasil), entre 1970 e 2005, continua a sonhar com outra Igreja. Escreve ele, num texto em www.combonianosbne.org. node/526: “O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada (...). A Igreja se comprometerá sem medo, sem evasões, com as grandes causas da justiça e da paz, dos direitos humanos...”
Texto publicado a 10 de Abril de 2009