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P�blico

D. José Policarpo: Ratzinger foi o meu modelo de pensamento

09.05.2010 - 12:14 Por António Marujo

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Muito antes de ser Papa, Joseph Ratzinger já era um modelo para o então professor de Teologia José Policarpo. O cardeal-patriarca de Lisboa traça aqui o perfil de Bento XVI e fala de alguns dos temas que têm marcado a agenda: os abusos sexuais por membros do clero, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, as relações da Igreja com o Estado. E diz que "ser católico a fazer de conta tem os dias contados".
D. Policarpo recebeu a Pública na casa patriarcal. Estava bem-disposto e descontraído

Somos recebidos numa das salas da casa patriarcal, por um cardeal bem-disposto e descontraído. A sala está decorada com azulejos oitocentistas que representam cenas de caça. Situado entre os Olivais e a Portela de Sacavém, o palacete foi doado no século XX, por uma família de Lisboa, ao patriarcado, no tempo do cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira. A doação permitiu a Cerejeira construir o Seminário dos Olivais e, ao mesmo tempo, transferir para ali a residência patriarcal - onde vivem também os bispos auxiliares de Lisboa.



O cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, diz a propósito da homossexualidade que "nenhum cristão pode fazer da sua sexualidade um absoluto". Os bispos portugueses, prossegue, não estão à espera de que o Papa fale da questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo durante a sua visita a Portugal, esta semana. Defende que a investigação a casos de abusos sexuais deve ser feita, mas que a Igreja deve ser informada pelas autoridades quando isso aconteça.



Quem é este Papa que vamos receber pela primeira vez e que completou cinco anos de pontificado?



Ainda que nem sempre tenha sido assim na História, nos últimos séculos, de Pio IX [1846-1878] para cá, o pontificado tem sido servido por pessoas de grande nível, autênticos gigantes de humanidade. E isso tem enriquecido a função do papado.



Quando Bento XVI foi eleito, um dos assuntos de conversa entre nós, cardeais, era que o melhor era afastar a ideia de estarmos à procura de alguém que imitasse João Paulo II, o Papa mais carismático dos últimos tempos.



Não há dúvida de que se escolheu um colaborador íntimo de João Paulo II, um aspecto que não ressalta muito na análise deste Papa, porque ele é discreto. Mas o próprio João Paulo II apoiava-se muito nele, até porque aquilo de que ele gostava era das multidões e do contacto pastoral, teve sempre uma grande dificuldade em lidar com o realismo da cúria.



Mas é diferente de João Paulo II...



Tem características muito diferentes. É um grande teólogo, dos maiores do século XX, com uma perspicácia de inteligência muito grande, aliando a essa característica de grande pensador uma sensibilidade de artista, com uma grande abertura a esse mundo da estética.



É um homem muito afável: uma conversa pessoal com ele é um prazer. Um tímido: quando contactava com ele, antes de ser Papa, era tão delicado na abordagem das questões que achávamos que ele estava com medo... Mas se João Paulo II era um homem que ouvia, com este estabelece-se um diálogo apaixonante. Nesse aspecto, é um homem de primeira grandeza.



É um contraste, depois de um Papa das multidões, ter um Papa de gabinete, um filósofo...



Não diria que é um Papa de gabinete. Bento XVI tem limites de prudência pessoal: além da idade, é um cardíaco, fez bypasses, não tem uma saúde muito forte. Tem uma disciplina de vida muito rígida por ter esses limites. E começou [o pontificado] aos 78 anos. Com essa idade, o Papa João Paulo II já ia com 20 anos de pontificado.



Foi eleito aos 58...



Eu diria que Bento XVI é um homem que gosta dos contactos, mas não é um homem de multidões. Mesmo assim, tem-me surpreendido a maneira como tem reagido às multidões nas visitas que faz.



A Igreja não perde por ter deixado de ter um Papa tão congregador e capaz de projectar o seu carisma na relação com o mundo, como era João Paulo II?



O que lhe posso responder? Avaliar as perdas e ganhos dessas coisas na Igreja é muito difícil. Os valores que a Igreja procura são de uma ordem a que a sociedade no seu todo tem cada vez menos sensibilidade.



Uma coisa posso verificar: os Papas têm sido sempre muito diferentes uns dos outros. Nessa diferença acaba por se verificar que eles foram a pessoa certa em cada momento. Eu acredito que é o espírito de Deus que está por trás dessas coisas... Uma das grandes dificuldades de julgar a Igreja - por exemplo, na comunicação social - é não ter em conta uma coisa essencial: a Igreja não é só um fenómeno sociológico e humano, é um fenómeno espiritual. Acredito profundamente nisso... Não creio que a análise de perdas e ganhos seja o caminho. Se há aspectos que um pontífice sublinha mais, há outros em que este, por exemplo, tem mais capacidades: um diálogo de qualidade com o mundo da cultura na busca da verdade, que é um dos grandes problemas do nosso tempo. A mediatização global, se teve a vantagem de expandir imenso o pensamento e a opinião, tem uma desvantagem: raramente se vai ao fundo da verdade. A verdade é um parente pobre da cultura contemporânea.



Nesse sentido, é um Papa que abre?



É um homem extraordinariamente preparado para isso. Sou suspeito, porque sempre gostei muito de Ratzinger, foi o meu modelo quando comecei como professor. Nunca fui aluno dele, mas fui lendo sempre tudo o que ia publicando e apaixonava-me a maneira como ele abordava as questões. Foi o meu modelo de pensamento. A última encíclica, Caritas in Veritate [Caridade na Verdade], é das coisas mais bonitas publicadas nos últimos tempos.



Sente-se um discípulo espiritual deste Papa?



Não teria coragem de dizer isso. Sinto-me discípulo de Cristo. Tenho uma grande afinidade intelectual por ele, não o escondo.



No início do pontificado, o Papa falou várias vezes na prioridade que queria dar ao diálogo ecuménico. Houve pequenos passos conseguidos com os ortodoxos, mas não deveria ter acontecido algo mais nestes cinco anos?



Esse dinamismo não é específico deste pontificado. João Paulo II foi também extremamente empenhado nessa questão. É evidente que os passos não podem ser dados só pela Igreja Católica, têm de ser também pelos outros. Não tem sido fácil, embora se tenham dado passos importantes que, aliás, passam despercebidos à grande mediatização. Estou a pensar num acordo com as igrejas luteranas sobre o sentido da justificação, que era uma questão crucial na teologia das duas igrejas e que foi celebrado ainda por João Paulo II. Neste Papa, gostaria de sublinhar a grande preocupação em não complicar a desunião que as diferentes interpretações do cristianismo foram gerando ao longo dos séculos. Tem sido feito um esforço em relação ao grupo que costumamos identificar com monsenhor Marcel Lefèbvre, o que tem sido alvo de críticas, porque há sectores católicos que acham que é ir longe de mais para salvaguardar a unidade da Igreja. O problema está longe de resolvido. Qual é a verdadeira génese destas especificidades que depois levam à ruptura da comunhão? Muitas das manifestações de diversidade que surgem hoje na Igreja teriam dado cismas em séculos passados. Hoje não, e esse é um dos grandes triunfos da Igreja dos últimos tempos, o que traz dificuldades internas. Na Igreja, como no resto da sociedade, a unidade na uniformidade é mais cómoda...



Mas o que se pretende neste caso? Não se está a procurar a unidade a todo o custo com um grupo que não a quer fazer e que anda há 40 anos a dizer que não aceita o Concílio [Vaticano II]?



E isso ficou muito claro num consistório a que o Papa nos convocou para analisar a questão...



E onde a maioria dos cardeais era contra estes gestos...



Diria que foi um diálogo muito fraterno, onde ficou absolutamente claro que o lado de lá tinha de aceitar globalmente o Concílio Vaticano II. Não se trata de discutir se se celebra ou não em latim, é uma questão de acreditar na Igreja. Os aspectos que têm dado mais polémica são os que parecem mais retrógrados e fundamentalistas, como o latim nas celebrações, mas são pormenores.



Mas são também posições como esta que levam a que este Papa seja visto como conservador...



É, por esses casos pontuais. Neste caso concreto dos lefebvrianos, o problema é mais fundo do que isso. Não se resolve se não se aceitar um pluralismo nas expressões, desde que esteja garantido o essencial.



Mas do lado oposto da Igreja, essa pluralidade já não é tão bem aceite. O Papa Pio XII [1939-58] chegou a escrever que a opinião pública é vital para a Igreja. Mas às vezes o debate não é tolerado em relação a todos os sectores...



Isso depende do que se chama opinião pública. Aquilo a que Pio XII se referia não é o que diz a comunicação social, que devia ser um instrumento ao serviço da opinião pública. É o pressentimento contínuo, no caso concreto de um bispo diocesano, de qual é o sentir e o pensar profundo da comunidade.



Voltando à visita: tem havido protestos de vários sectores, nomeadamente de sindicatos, por causa da tolerância de ponto concedida pelo Governo. Devia ser concedida tolerância ou não?



Compreendo que haja sectores que reajam assim. Vejo-os mais na óptica de reacções ao Governo do que aos factos em si. Vivemos numa democracia plural e este Governo está debaixo de fogo em várias frentes. Se tomasse a opção contrária, haveria outras vozes a criticar. Temos de ser realistas: em Lisboa não haverá possibilidade de se fazer a vida normal, entre as questões da segurança e uma multidão que pode atingir de 100 mil a 200 mil pessoas que convergem para a cidade, a mobilização dos jovens... Essa crítica não tem em conta as necessidades da harmonia duma cidade num grande acontecimento como este, numa visita como esta, que não é uma visita qualquer...



Mas há quem afirme que não há uma religião oficial e o Estado não devia conceder a tolerância...



Essa agora! Não há uma religião oficial e ainda bem que não há. O Estado é laico e a laicidade positiva significa que deve estar atento a todas as confissões. Estou convencido de que, se amanhã houvesse uma grande manifestação de outra religião, o que é pouco provável entre nós, o Estado tinha a mesma obrigação de [conceder] essa tolerância de ponto. É o mínimo que se pode dar para que haja harmonia nesse dia.



Que consequências espera que a visita possa ter para a Igreja em Portugal?



Vale como acontecimento. Não se espera nenhuma revolução... Para nós, católicos, estes momentos fortes sob o ponto de vista espiritual têm consequências. Talvez nunca se chegue a saber as mais bonitas, que são geradas no interior das pessoas. A Igreja continuará depois da visita a tentar fazer a sua missão. Não estamos à espera dele para nos dizer o que havemos de fazer.



Os bispos portugueses já sugeriram ao Papa para tocar na questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos seus discursos?



Não, já dissemos claramente o que pensávamos. Preocupa-me o que a lei vai significar em matéria de educação. Há escolas onde os docentes estão a dar a entender aos alunos que é tudo a mesma coisa. Isso preocupa-me. De resto, a lei em si mesma... É um grande movimento internacional que está a [mobilizar]. Tenho pena que as forças políticas não tenham clarividência para julgar isto no conjunto do que significa em termos culturais e de civilização. Mas nem o Papa se vai embrulhar nisso nem nós estamos preocupados. A posição da Santa Sé nessa matéria é absolutamente clara e não estamos à espera de que seja repetida.



Há pequenos grupos de católicos homossexuais que se têm reunido em igrejas de Lisboa. Como tem acompanhado a experiência?



O vosso jornal [a 11 de Abril] fez uma encíclica sobre essa matéria. Penso que é uma forma de pressão. Não há dúvida nenhuma que ali há sofrimentos. Não é preciso misturar inevitavelmente as duas questões, a vivência da realidade dos homossexuais e a do casamento. Situam-se em planos diferentes. É uma questão que precisa de ser mais aprofundada. O que é que significa a homossexualidade? Os estudos têm de avançar mais um bocadinho.



E dentro da Igreja?



Nós não somos donos da Igreja. No dossier que foi apresentado [na Pública], bem feito, o que ressalta é que a sexualidade é um direito absoluto em todas as suas expressões. Não é. No cristianismo, a sexualidade é para ser vivida com dois parâmetros: o da dignidade e o da generosidade, como realização da pessoa humana. Nenhum cristão pode fazer da sua sexualidade um absoluto. Tem que a viver integrada num projecto global de generosidade e de liberdade. Sexualidade significa sempre dom e renúncia.



Mas quando esses homossexuais dizem que não devem renunciar à sua sexualidade por causa da fé, isso não deveria levar a Igreja a uma outra atitude de acolhimento?



Metam na vossa cabeça uma coisa: a Igreja pode mudar e adaptar-se na descoberta das melhores maneiras de comunicar a sua mensagem. Mas nunca mudará o essencial da sua mensagem por nenhuma espécie de pressão. Uma coisa é a solicitude para acolher toda a gente. Mas formas de pressão para que a Igreja mude ao ritmo da batuta da sociedade e da comunicação social, não contem com isso.



Na altura do debate sobre a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, houve católicos que se mobilizaram contra. É difícil ver esses católicos mobilizados para enfrentar questões como a pobreza. Há duas igrejas diferentes?



Não, diria que há pessoas mais sensíveis a umas coisas do que a outras e isso é normal. Não podemos pedir a toda a gente que se empenhe igualmente em todas as causas.



O Papa disse na última encíclica e repetiu, na Páscoa, que é preciso repensar os alicerces do sistema financeiro. Isto não deveria levar a uma reflexão dos empresários e dos trabalhadores cristãos? Não houve financeiros e empresários católicos reconhecidos que quase tentaram branquear essas ideias?



Não sei. Uma coisa é concordar com uma linha de pensamento e de acção, que é a da doutrina social da Igreja, outra coisa é ter possibilidade de enfrentar as mudanças de sistema que isso supõe. O que temos hoje é um peso enorme dos sistemas financeiros. As finanças não podem ser desligadas da economia. Elas nasceram no quadro da economia liberal como potenciação do desenvolvimento económico e, durante muito tempo, os lucros do sistema financeiro eram calculados a muito longo prazo. Uma das causas desta crise foram os lucros a curto prazo. No sistema financeiro que hoje é praticamente comum em todo o mundo, há um triunfo sobre as economias planificadas de tipo marxista, [o que] tem grandes valores como a salvaguarda da liberdade no campo financeiro e económico. Mas tem grandes franjas a exigir correcção, onde ressalta, como fenómeno mais preocupante, o que se chama corrupção. É o lucro desenfreado e sem critérios. Por trás de tudo isto está também outra questão: a perda do sentido de responsabilidade que cada um de nós tem para com todos os outros. Quando se perde isso, é um caso sério. A doutrina social da Igreja já sublinha a importância do bem comum. Isso não significa que o lucro seja ilegítimo, mas não pode ser julgado só a partir do interesse do indivíduo.



O que acontece é que não só o sistema financeiro se desligou da economia real...



Essa é a causa da crise. E as análises são lúcidas, mas os meios de acção têm dificuldades em mexer em sistemas. Este problema rebentou agora, em relação à questão da ecologia. No dia em que tivermos 90 por cento de certeza que o planeta caminha para um aquecimento global, é caso para perguntar: a humanidade quer suicidar-se? Mexer nisso é mexer em toda a estrutura económica do mundo. Isso supõe lucidez de análise e capacidade de decisão. As democracias geraram governos participativos, mas fracos.



Porque hoje mandam cada vez menos?



São governos fracos, porque as decisões - e bem - são repartidas.



A crise mostra que os governos democraticamente eleitos são submetidos aos ditames de um sistema financeiro mais poderoso do que as democracias.



É isso, é muito difícil. Aliás, a função da doutrina social da Igreja, como a interpreto, não é ditar imediatamente acções políticas. Somos suficientemente realistas para saber que isso não é possível. É criar um alerta contínuo para a consciência colectiva dos decisores e das populações.



Que rumo Portugal deveria seguir nesta crise?



Hoje não há margem para um rumo autónomo num país da União Europeia. Com vantagens e desvantagens, mas isso a História dirá. Se a União entrar em colapso, nenhum de nós sabe o que isso pode significar. Não tenho dados para saber se estamos a ir bem ou mal. Mas os que há são preocupantes para nós e para toda a União.



Mas nós temos alguns factores, que eventualmente existirão noutros países: corrupção, fosso entre pobres e mais ricos, ordenados dos gestores, que são dos mais altos da Europa...



São mesmo?



É o que os indicadores dizem...



Essa é uma das consequências dessa sociedade que nós criámos. Também fui gestor de uma universidade...



Mas não tinha os ordenados de certos gestores...



Não, mas também havia ordenados altos e o princípio era este: quando uma pessoa num lugar gera o dobro do dinheiro que ganha, pode ganhar. Isto significa o quê? Que há pessoas que têm tais mais-valias como gestores que as empresas arriscam pagar-lhes muito. Até porque, se não o fizerem, perdem-nos. E depois há contratos. No caso mais discutido [de António Mexia, da EDP], que foi nosso colaborador na Católica, está perfeitamente claro nos contratos que fizeram com ele. Outro problema é o que se faz com esse dinheiro, se é cristão ou se tem um ideal de humanidade.



Não há uma certa imoralidade num país onde tanta gente sofre para sobreviver no dia-a-dia?



Que é chocante para a opinião pública, é. E é chocante porque se tornou público. Isto não significa que eu não seja sensível a uma justiça mais equitativa, que não é fácil, porque o sistema está construído assim. A sociedade não está feita de maneira a existir uma distribuição equitativa. A sociedade tem de lutar por esquemas em que todos, mesmo os mais desfavorecidos, tenham dignidade. Esse é o grande desafio da política social e [também] para nós, Igreja.



É importante defender o Estado social?



A Igreja não se pronuncia sobre formas organizativas do Estado. Denuncia-as, se não prestam. De qualquer forma, a doutrina social da Igreja, de Leão XIII [1878-1903] para cá, tem sido clara a esse respeito. Até porque há várias formas de organização na busca da justiça. Os Estados Unidos, por exemplo, nunca foram por aquilo a que se chama o Estado social. O programa do [Presidente] Obama para a saúde não se afasta muito do que era, obriga as pessoas a ter seguro. Não tem nada de parecido com o nosso sistema de saúde.



Como olha para Obama?



É um fenómeno daqueles que aparecem de vez em quando nos Estados Unidos. É muito parecido com o fenómeno Kennedy, nos anos 1960. Parece bom homem, é inteligente, um grande orador. É cedo para avaliar, mas algumas das teses dele são apaixonantes e é preciso coragem para as aplicar num país daqueles. Nos EUA, de vez em quando, aparecem ideias messiânicas que galvanizam as massas e depois há por trás o Estado que é silencioso, pragmático, que agora é militar e condiciona o poder todo.



Quando dizia que ele é um fenómeno Kennedy, tem em mente o peso do factor religioso e do cristianismo nos EUA?



A América é um país profundamente cristão, numa variedade imensa de expressões. Uma das coisas que a Europa hoje não percebe, no diálogo com os EUA, é que este laicismo que aqui reina lá não pega.



Bento XVI, nesta visita a Portugal, não é uma figura fragilizada com os casos de abusos sexuais?



Bem têm tentado fazê-lo, mas não creio. É uma pessoa a sofrer. Considero que isso, apesar de tudo, é muito relativo. A questão tem contornos novos e, de certo modo, espero que daí venham vantagens para a sociedade. Há 20 ou 30 anos isto não se punha assim. O Papa está a sofrer muito com os casos conhecidos de abusos e isso é uma tristeza para todos nós e não é pelos motivos que têm sido apregoados. O grande ideal que temos é fazer uma Igreja digna de Jesus Cristo. Isto são mágoas na Igreja pecadora que nos fazem sofrer muito.



Mas o problema não é também a Igreja ter ocultado estes casos?



Mas ocultou como? Isso é uma das teses que os media puseram a funcionar. Para já, na Igreja, a confidencialidade e a discrição são componentes funcionais do seu ministério. Ocultou porque não denunciou? É o que se diz. Mas é essa a nossa função na sociedade? Mais uma vez, estamos a transpor para uma realidade de há 30 ou 40 anos uma consciência que a Igreja hoje tem. É importante ter em conta que a Igreja tem uma ordem jurídica própria e, se há países que não reconhecem a sua autonomia, isso não é o que acontece no nosso caso, onde a ordem jurídica da Igreja está perfeitamente reconhecida na Concordata. No nosso contrato, tem de ser vice-versa. Porque as duas formas jurídicas reconhecem-se mutuamente. Da mesma maneira que se está a exigir à hierarquia da Igreja que comunique, certamente também por meios discretos, os casos claramente apurados dentro da ordem jurídica canónica, penso que a ordem civil devia fazer o mesmo. Soube nos últimos dias de casos de investigação da polícia de que nós não soubemos, não sei se verdadeiros se falsos. Tem de ser mútuo.



Esse é o sentido da afirmação da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), quando diz que não tem conhecimento de casos concretos?



Não. É bom que tenhamos em conta isto: não significa que não haja casos, mas o fenómeno não tem em Portugal a mesma dimensão que parece ter noutros países.



A CEP não deveria ter avançado com uma decisão igual à da Conferência Episcopal Alemã, no sentido de averiguar se existem alguns casos?



Mas quem disse que nós não o fazemos?



Não foi anunciado.



Por que é que haveria de ser?



Quer dizer que isso está no horizonte da CEP?



Não, nós não vamos inventar casos. Estamos atentos. Se surgirem casos, vamos tratá-los, antes de mais porventura tomando mais a sério o que está previsto na ordem canónica. Até porque uma das coisas que neste momento estão a magoar o coração é que nós temos um clero formidável e os padres estão todos sob suspeita. A primeira obrigação de um bispo é estar com o seu clero e apoiá-lo. E isto é uma coisa tremenda.



Temos falado com vários padres que acham que a estratégia seguida pelo Vaticano é a errada.



Não me quero pronunciar sobre isso. Penso que as pessoas estão todas chocadas com a revelação de casos reais. Que me têm feito impressão algumas posições, têm, mas compreendo-as. Quando se está na trincheira debaixo de fogo, não temos a calma e a serenidade para tomar as decisões. O que eu espero desta avalanche, em termos internos da Igreja, é um cuidado muito maior na formação. A grande resposta que os padres têm a dar a isto é mostrarem que são verdadeiramente dignos.



É a formação que está em causa? Não são o celibato e a relação com a sexualidade?



Em relação à questão do celibato... Durante muito tempo, isto [a pedofilia] não estava tipificado como está agora. As anormalidades acontecem em todos os horizontes, quando as pessoas são casadas ou solteiras ou celibatárias, porque acontece quando a pessoa não integrou a sua sexualidade. Virem-me dizer que o fim do celibato resolvia o problema... Pelo contrário, o celibato vivido ajuda [a resolver] o problema. O celibato é uma experiência de delicadeza contínua para com as pessoas todas, é uma experiência maravilhosa, que ajuda no respeito pelas crianças. Tenho mais a certeza disso do que no caso de uma pessoa mal casada, com frustrações. Não excluo que o ser casado ou não ser casado não tenha indirectamente a ver com isto. Mas o que está por trás é a harmonia da experiência de viver a dedicação às pessoas, sem excluir a ternura, no ideal de uma virgindade consagrada. Isso ajuda com certeza.



Como é a Igreja que hoje está em Portugal?



É bonita. O grande desafio é este: as relações da Igreja com a sociedade alteraram-se muito. Em toda a Europa, durante séculos, a Igreja foi protegida pelo enquadramento social que tinha ajudado a criar. Era protegida pelo poder político, pela sociedade e isso hoje tem-se transformado. A Igreja hoje continua a ser bem aceite mas não é protegida. Temos de criar uma verdade profunda do nosso ser Igreja, independentemente dessa protecção exterior. Donde, o grande desafio da Igreja é a autenticidade. Isso do ser católico a fazer de conta tem os dias contados.



Bento XVI causou surpresa quando disse que não se importava que a Igreja se tornasse minoritária. Uma Igreja que não tenta chegar a todos é viável?



Este Papa, antes de ser Papa, defendeu que o futuro da Igreja na Europa é serem grupos minoritários mas profundamente cristãos. Não sei, tenho dificuldade em prever o futuro. Às vezes basta um grande acontecimento, um grande sofrimento colectivo para virar tudo. Neste momento, o grande desafio que se põe à Igreja em Portugal é o da autenticidade do testemunho e que atinge a formação, o envolvimento das pessoas. Um cristão centrado em si mesmo não sabe o que é o cristianismo.



Há problemas com a laicidade?



A Igreja não tem problemas nenhuns com a laicidade do Estado. Há uma dimensão secular, mas que pode ser inspirada por outros princípios, como a generosidade cristã. Às vezes irrita-me quando se tenta estender a laicidade do Estado à laicidade da sociedade. A laicidade do Estado é uma neutralidade positiva, de respeito por todos. Mas, como dizia o doutor Mário Soares, não se pode tratar de forma igual o que é desigual. Não pode haver crucifixos nas escolas, mesmo que as famílias e os alunos o queiram? Esta laicidade estendida a todas as manifestações da sociedade não é uma compreensão moderna da laicidade, é uma compreensão jacobina da laicidade.



A CEP debateu em Abril a acção social da Igreja e a relação desta com o Estado. Muitas instituições dependem do Estado para sobreviver, mas fazem o que o Estado não pode ou não quer fazer. Essa relação pode levar a que essas instituições façam só o que os governos e as autarquias pedem?



Não. Nem isso é verdade. Há dois princípios: a Igreja deve mentalizar-se para praticar a caridade em qualquer circunstância; e a grande novidade da Concordata de 2004 em relação à de 1940 é que a relação do Estado com a Igreja é feita no princípio da cooperação em ordem ao bem comum. Ambas as instituições têm uma missão em relação à sociedade como um todo e cooperam. É-me grato afirmar que, para além das polémicas circunstanciais, sobretudo no campo social, esta cooperação tem sido feita em bom espírito. O parque social da Igreja, que é muito pesado, é insustentável neste momento sem essa cooperação. Mas o mesmo parque, com os critérios da administração pública, custava três vezes mais. Espero que não se evolua noutro sentido, até porque este é o sector onde esta cooperação está mais estruturada no terreno. Há outros em que não. Não faremos nada da nossa parte que o ponha em questão, mas defendemos cada vez mais a especificidade da nossa maneira de estar nesse sector. O próprio conceito da acção social tem de ser reflectido. Mas não ponhamos em questão o mais conseguido da ligação entre o Estado e a Igreja.



Em relação à Concordata, quase seis anos depois, ainda há aspectos por regulamentar, como o património ou a fiscalidade.



A comissão bilateral para o património começou atrasada, mas todos conhecemos as fragilidades da nossa política da cultura: os ministros têm de fazer uma festa com poucos foguetes. Mas agora está tudo a funcionar. A Concordata é um tratado internacional e alguns aspectos precisam de ser especificados em decretos-lei. Eu coloquei o problema de saber se, com a entrada em vigor da nova Concordata, em 2004, cessavam os diplomas aplicativos da Concordata de 1940. E de como é que íamos, Estado e Igreja, conseguir em tempo útil aplicar a Concordata. Foi acordo comum que toda a legislação se mantinha em vigor até ser substituída por novos diplomas. Mas isso não ficou escrito, foi um acordo verbal, e começámos a sentir, da parte dos ministérios, que não se aplicava a legislação que vinha de 1940. Isso já foi colmatado na saúde e nas prisões. O sector que ainda está todo em aberto é o da educação.



Globalmente, está satisfeito?



Nunca estou completamente satisfeito, mas alguns departamentos governamentais não agiram como era previsto que agissem. Mas estamos a andar no bom caminho.



Como vê a convivência entre os vários credos religiosos no país?



É boa. Com as seitas, é impossível qualquer tipo de diálogo, com os muçulmanos é bom, somos dos poucos países [católicos] que têm um acordo de cooperação com o Aga Khan. Não é um problema. A questão para os países de maioria católica é em que medida é que esta nova realidade de uma pluralidade religiosa não leva a um sincretismo religioso, que não é.