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Cerejeira em flor

12.05.2010 - 16:53 Por Rui Tavares

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Ligo a SIC para ver a transmissão da visita do Papa. Sou imediatamente distraído por uma música pseudo-sacra de órgão como som de fundo enquanto a pivot lê as notícias. Mudo para a RTP. A mesma estapafúrdia ideia, mas agora com uma música de coro entre o gregoriano e o new-age.

Os repórteres em direto ora descrevem a mecânica do "papamóvel" ora tentam improvisações teológicas mal-amanhadas. Pedro Santana Lopes, em entrevista, perora sobre a "alta craveira intelectual" de Bento XVI. Santana Lopes! Os jogadores do Benfica (do Benfica!) foram entregar uma águia e uma camisola da equipa de futebol ao Papa. Foi pena faltar um fadinho. E alguém lembra que a "sacristia improvisada" da "santa missa" foi no Ministério das Finanças (na situação endividada em que estamos, ninguém pode levar-nos a mal por tentarmos um milagre).

Eu não posso ter sonhado isto tudo. Será que já não há nada sagrado?

Falando sério, minha gente - mesmo para um ateu (já nem digo para um benfiquista), desde que minimamente interessado pela história e evolução do catolicismo, tudo isto é muito perturbante. O puro avacalhamento televisivo da solenidade religiosa é, bem o sei, involuntário. É profanação bem intencionada. Nem os jornalistas portugueses, nem os jogadores do Benfica são, bem o sei, sublimes teólogos. Mas o que isto quer dizer é que, por muita conversa nostálgica que se faça, a distância entre a sociedade contemporânea e a igreja católica é já tão grande que a primeira não consegue aproximar-se da segunda sem a trivializar irreparavelmente.

Mas a inversa consegue ser ainda pior.

Logo no seu primeiro discurso em solo nacional, o único português que Joseph Ratzinger resolveu citar foi nem mais nem menos do que Manuel Cerejeira, o cardeal do salazarismo. Para não deixar dúvidas, referiu-se-lhe até como de "veneranda memória".

Vai ser interessante ver os neoconservadores portugueses tentarem apanhar esta bola. Desvalorizar a citação não é possível, para quem sempre disse que nada é deixado ao acaso nos textos do "Papa intelectual". Mas também não dá para dizer que a citação, trivial e quase gratuita naquele contexto, fosse a porta para uma interpretação necessária ou intelectualmente estimulante. Ou Ratzinger quis citar um português, e na sua ignorância sobre o país, não se lembrou de Santo António ou do Padre Vieira (não serão de veneranda memória?) ou então Ratzinger sabe muito bem o que quis com a citação a Cerejeira.

Nesse caso, o Papa terá vindo a Portugal em pleno ano do centenário da República para iniciar a visita sob o signo da "veneranda memória" de quem pôs a igreja católica em sintonia com a ditadura. À nossa democracia que o recebeu com tanta pompa atirou uma citação da ditadura como uma pedra de mão escondida.

Isto significa que a distância entre esta igreja católica de Ratzinger (a de Ratzinger, não o catolicismo generoso, tolerante e pluralista que também existe) e a sociedade contemporânea é já tão grande que a primeira não pode relacionar-se com a segunda sem lhe mostrar a sua agressiva incompreensão. O que vale é que a sociedade contemporânea, entre a abundância da escolha e a leveza das interpretações, não liga e segue em frente.

Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu pelo BE (http://twitter.com/ruitavares)