1. Mundo
  2. Política
  3. Economia
  4. Desporto
  5. Sociedade
  6. Educação
  7. Ciências
  8. Ecosfera
  9. Cultura
  10. Local
  11. Media
  12. Tecnologia
    1. |
    2. |
    3. |
    4. |
P�blico

A monja que trocou a astronomia pelo carmelo

09.05.2010 - 13:36 Por António Marujo

  • Votar 
  •  | 
  •  6 votos 
Há uma monja que estudou para observar os astros e aterrou no carmelo. Outra que jogava futebol e agora faz hóstias. Uma terceira que deixou as belas-artes para só oferecer "o seu rir ao seu pequeno Deus". A Pública foi conhecer como vivem as monjas dentro da clausura monástica em Bande, Paços de Ferreira.
Antes de começar a oração, as monjas juntam-se na statio

Aqui, a vida é ritmada pelos tempos de oração, ao sabor dos nomes tradicionais da liturgia das horas, rezada nos mosteiros.

Hora tércia
Deixar os astros, regressar à fonte


A irmã Filipa do Coração de Maria, 35 anos, tem as mãos apoiadas na enxada, chapéu quase até aos óculos, a cruz sobre a veste de trabalho - azul, bem diferente do hábito castanho. "Troquei as criaturas pelo Criador."

É como quem diz: deixou a Astronomia, área da Matemática Aplicada em que se licenciou na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, e aterrou na clausura no Carmelo do Coração de Maria, em Bande, perto de Paços de Ferreira.

"Não estava à espera de ser freira nem monja. Pensava continuar a fazer investigação, mas Deus trocou-me as voltas e começou a chamar-me de mansinho." Buscou o caminho em outros mosteiros, estava mesmo quase a desistir quando apareceu o carmelo de Bande.

Chama-se sachar batatas e é a primeira vez na sua vida que a irmã Filipa o está a fazer. Mas como chama Deus de mansinho? Recorda-se de ter assistido a uma conferência da madre do mosteiro, Vera Maria, sobre a oração. "Fui para o último banco, a ver se aquilo não se pegava", diz, voltada para a prioreza, ali ao lado. Riem ambas.

Mesmo assim, gostou do claustro, do coro, de ver um carmelo sem grades... Conversou com a madre. "Quando saí do portão, dei comigo a perguntar: o que estou aqui a fazer fora? O meu lugar é ali dentro."

Deixou então a especialização e o trabalho que iniciara no Planetário do Porto e foi para o mosteiro das monjas carmelitas, em Outubro seguinte. Aqui tem estado, até hoje, dia em que a falta de um jornaleiro fez com que, pela primeira vez, a actual conselheira da prioreza tivesse de cortar ervas daninhas que rodeiam as batatas. "As pessoas do campo têm uma grande sabedoria. As ervas daninhas são muito parecidas com as outras plantas e temos de as saber distinguir bem, para não cortar as batatas."

Em volta, uma paisagem toda transformada pelas monjas. Enquanto se construía o mosteiro, desde 2001, foram plantando um pequeno bosque de choupos, um pomar com figueiras, pereiras, pessegueiros, ameixoeiras, diospireiros, aveleiras ou macieiras, e ainda cultivando batatas, abóboras, couves ou ervas aromáticas. Cinco hectares de terreno que ajudam a reduzir a factura mensal - já iremos fazer contas a quanto custa viver aqui.

Quando entrou, recorda a irmã Filipa, era a festa das Vésperas de Santa Teresa (d"Ávila), um dia importante no calendário carmelita. "Uma grande mulher, ainda pouco entendida na visão futurista que tinha. Há quem se agarre ainda à santa Teresa do século XVI, mas ela dizia que se deve ir sempre para melhor, regressando às fontes."

Uma mulher que enfrentou incompreensões e obstáculos numa Igreja marcada pelas tensões e conflitos que culminaram na Reforma protestante. "Foi ela que deu um cunho apostólico aos carmelos", diz a irmã Filipa. Mas há outras mulheres importantes que não foram canonizadas e são referência: uma outra religiosa que conheceu, chamada Teresa Castro, "e a nossa madre".

Percebe-se o carisma de Vera Maria, 55 anos, há 30 no mosteiro, junto das suas irmãs. Está no terceiro ano do quarto mandato como prioreza. Fez dois mandatos de cada vez, intercalados com dois triénios como mestra de noviças. Além dos dotes pessoais na pintura, na música ou no conhecimento de plantas, por exemplo, tem um forte papel na liderança espiritual que imprime à comunidade.

Ri, pouco à vontade, quando Filipa a aponta como referência. Aproveita a pergunta sobre outros nomes de mulheres na história do cristianismo para desviar: Hildegarda de Bingen, a mística do século XII, "é, se não o maior, um dos maiores vultos medievais. Praticava medicina, música, exegese da Bíblia, sabia grego e latim..." E, nas suas visões espirituais, sonhava com mulheres no altar...

Numa altura em que tanto se debatem questões como o celibato ou as infidelidades de membros do clero, Vera Maria assume que a mulher tem um papel importante. "Está diluído pela imagem masculina da Igreja, mas é uma realidade."

Temas que não são tabus neste mosteiro: "Sim, falamos sobre o assunto", respondem ambas, quando perguntadas se o sacerdócio feminino é conversado. "Não é a nossa prioridade, mas falamos e debatemos o assunto." Há opiniões diferentes? Sim, concordam de novo a madre e a irmã Filipa.

"A nossa prioridade é como regressar hoje a Jesus e ao evangelho. Nem sempre é fácil saber como voltar à fonte, porque fomos enchendo cisternas e esquecemos a fonte", diz a irmã Filipa. E a prioreza completa: "Faz parte da nossa vocação este anseio de voltar a Jesus e ao evangelho, despirmo-nos de coisas que os séculos foram acumulando, para poder mostrar o verdadeiro rosto de Jesus."

Hora sexta
Um livro de desassossego


O ritmo no carmelo, nesta manhã, está muito alterado por causa da falha do jornaleiro que costuma ajudar as monjas nos trabalhos da horta. Várias delas tiveram de largar o trabalho das hóstias, encadernação, artesanato, para dar uma mão na agricultura. E a oração que junta a hora sexta e a hora noa tem de ser adiada meia hora.

Boa parte do sustento das carmelitas está, hoje, na horta em redor do mosteiro. Mas quando Filipa bateu à porta do carmelo, em Fevereiro de 2000, as monjas estavam ainda no Porto: o carmelo situava-se na cidade, entre o trânsito, o comboio e os prédios altos com vizinhos que, em alguns casos, chegavam a vir de binóculos ver as monjas a trabalhar na horta.

"Não somos bichos raros", diz a madre. Certo é que, aqui, também houve necessidade de proteger algumas zonas com pequenos taipais, para que as irmãs não se sentissem vigiadas a cada momento.

Há muito a fazer e a perguntar nos trabalhos da horta. Já veio o estrume? O problema da água está resolvido? É preciso sachar, cortar ervas daninhas, podar, transportar estrume ou alfaias no tractor, tratar de uma ramada que qualquer dia dará uvas, zelar pelas estufas de morangos ou pelas árvores de fruto. Há também um pequeno jardim bíblico e mais uns quantos canteiros para cuidar - o caminho até ao pequeno cemitério, onde já estão enterradas três monjas, é um enlevo para o olhar e um bálsamo de aromas.

Um livro de desassossego, a vida destas irmãs. Até por causas externas. Queixa-se a madre Vera Maria que a EDP colocou dentro do mosteiro uma linha muito baixa, que obrigou ao corte de vários choupos. "Não nos indemnizaram as árvores até agora, apesar de prometerem", diz. E quando transborda a pequena ribeira que ali passa, o rio Carvalhosa, o campo alaga e a água chega às árvores. "Pode ser suficiente para electrocutar alguém."


Hora de recreio
Duas crises que preocupam


"No Porto, tínhamos mais gente a aproximar-se do mosteiro. Aqui, ganhámos um maior ambiente de silêncio e de solidão, é a vantagem de estar na aldeia." Mas há uma dificuldade: "Temos o silêncio e a paz que procurávamos, mas pagamos uma factura muito elevada por causa das infra-estruturas", reconhece a madre superiora.

Electricidade, tratamento de águas, alfaias agrícolas não ficam baratas. Com mais o ordenado de uma cozinheira e uns 300 a 400 euros para a farmácia, dá seis mil euros por mês, contas por alto. Na alimentação, as 18 carmelitas gastam muito pouco - quase tudo vem do pomar, da agricultura ou da criação de ovelhas e galinhas.

O pequeno-almoço é tomado entre as 9h e as 10h, depois da oração de laudes e à medida do horário de cada monja. O primeiro tempo de trabalho vem a seguir, até às 11h, quando se interrompe para uma hora de lectio divina, nome dado à leitura individual da Bíblia. As irmãs distribuem-se pelos trabalhos agrícolas, encadernação, compotas, fabrico e embalagem de hóstias, artesanato, pintura de ícones ou de iluminuras...

Depois de almoço, e até às 14h, há um curto tempo de recreio e convívio, enquanto se fazem pequenos trabalhos - bordados, artesanato...

As monjas querem saber melhor o que os jornalistas pretendem. "Era bom que não olhassem para o mosteiro como um mistério, como algo esotérico." Só desejam, repetem, buscar Deus "na eternidade do tempo". Eram pessoas com carreiras ou empregos, trocadas por um apelo interior. Há no mosteiro uma antiga enfermeira, licenciadas em Ciências da Educação, Ciências Religiosas ou Educação Social, uma ex-pianista, uma licenciada em Belas-Artes, outra que foi contabilista e uma ex-educadora de infância. Além, claro, da irmã Filipa.

A maior parte do tempo do recreio é para falar da horta. Será viável a sua exploração? E falam ainda da situação crítica da economia portuguesa. A madre Vera Maria pede também orações pela crise que a Igreja está a viver, por causa dos abusos sexuais de membros do clero.

"O primeiro impacto foi ficarmos demasiado tristes. O mosteiro é um universo pequeno, o sofrimento da Igreja é o nosso", admite, falando sobre o tema da pedofilia. Não há televisão no carmelo, mas as notícias vão-se sabendo. "Foi motivo de muita dor..."

Nada, neste assunto, fica de fora do debate das monjas: "Talvez tenha falhado qualquer coisa como uma presença feminina, de uma mãe ou de uma irmã, junto dos seminaristas; se calhar houve uma ausência total dessa presença." Contrapõem-se outros argumentos: "Mas há padres e bispos excelentes e são a maior parte." Ou ainda: "Não se pode generalizar e criar pânico social."

Hora noa
Do futebol para as hóstias


Pode uma ex-jogadora de futebol produzir hóstias? De cada vez, as mãos da irmã Miriam, e das outras monjas, colocam 25 litros de massa na máquina. Saem transformadas numa lâmina de hóstia que depois será cortada em pequenas partículas redondas. Setenta sacos saem do carmelo de três em três meses, 50 quilos por saco. Para a missa de sexta-feira com o Papa, no Porto, as monjas estão a fazer 50 mil hóstias.

A irmã Miriam chegou a jogar futebol feminino nos Olivais, em Lisboa. Após um tempo, começou a não gostar do ambiente. Trabalhava em serigrafia e um dia veio ao carmelo de Bande visitar uma amiga. Gostou do que viu. "O mais importante que aqui encontrei foi a união da comunidade, a atenção das monjas umas para com as outras."

Ainda esteve numa comunidade religiosa de uma nova congregação em França, mas preferiu o carmelo, onde entrou em 1998. "Nunca tinha pensado em vir para a vida religiosa. A culpa foi da minha mãe, que rezou sempre para ter uma filha religiosa", diz, a rir. Riem e sorriem muito estas irmãs. Não há um rosto sério nem triste.

Enquanto coloca a massa na máquina de cozer, Miriam vai rezando. Rezam muito as mãos, enquanto trabalham. "Vou rezando e estando com atenção para que o termómetro não fique demasiado quente."

No corte das hóstias está a irmã Gabriela de Santa Maria. É autora de algumas pinturas que se podem ver pelo mosteiro. Formada em Belas-Artes, já não quer saber de qualquer eventual carreira artística - apesar de ter feito uma exposição com quadros seus e da madre Vera Maria na Câmara de Paços de Ferreira. "Não me importava só de varrer o chão, desde que fosse para contemplar Jesus."

É uma lâmina redonda que, como uma guilhotina, corta várias placas de hóstia ao mesmo tempo. As partículas caem directamente para uma caixa, para serem embaladas posteriormente.

"A única coisa que hoje desejo é buscar o meu Deus, mesmo que ninguém mais o busque", diz a irmã Gabriela. "Sou apenas um ser humano que deseja permanecer aqui, oferecendo a sua vida, o seu respirar, o seu rir, ao seu pequeno Deus."

As hóstias são, além da horta, a principal fonte de sustento das monjas. Começaram em 1993, numa altura em que também passaram mal. "Eu tinha pouco tempo de prioreza, não havia encomendas de pintura. Não tínhamos comida. Em Julho, pedi a alguém que ao menos me arranjasse abóboras, sem saber que só em Setembro é que haveria", recorda a madre Vera Maria.

Duas benfeitoras ofereceram as duas máquinas de cozer hóstias, 75 mil euros cada (15 mil contos na altura). "Depois começámos também a fazer compotas, ícones por encomenda, terços, lençóis, bordados..."

Tiveram de se colectar como panificadoras, nas finanças, e não conseguem tirar um ordenado inteiro. Além de que o fabrico de hóstias tem um grande desperdício: mais de metade vai para os animais. Agora, está a ser embalada uma encomenda de 200 mil partículas para uma livraria de Fátima.

Nesta tarde, ao mesmo tempo, há uma monja a fazer compota, outra na portaria, uma a trabalhar na enfermaria, uma outra a fazer hóstias e três na triagem e embalagem. Mas há também uma na cozinha, uma a trabalhar na horta, outra na rouparia e uma na contabilidade.

A irmã Miriam veio agora ajudar a madre Vera Maria na encadernação. Foi um investimento passivo que não se irá pagar: compraram máquinas em segunda mão, muito dinheiro mesmo assim. É "uma arte antiga, típica dos mosteiros", mas da qual as monjas de Bande nunca esperam ter lucro. As horas que dedicam a cada trabalho ficam longe de ser pagas.

Um pequeno espelho serve para ver se as letras - colocadas nos compositores, os suportes utilizados - estão na posição certa, antes de as gravar. O ferro vai a aquecer no "inferno", nome que dão ao pequeno forno eléctrico, antes de experimentar a textura da gravação - algo que só se aprende pela experiência e com tentativas.

Vera Maria aprendeu encadernação há cinco anos. Nas encadernações - livros de registo de paróquias, edições mais antigas para recuperar - lá está a marca entretanto registada pelas monjas para os seus produtos e trabalhos: Bande Monakai. Monjas de Bande, em grego.

Vamos reencontrar Filipa, agora com a irmã Maria do Rosário, a fazer restauro têxtil, outra das tarefas em que as monjas se empenham. Este estandarte-guia veio de Ovar. É tecido em damasco, com bordado em fio de ouro, e perfaz três metros.A franja, muito danificada, que envolve o tecido, foi originalmente bordada no próprio pano, o que torna mais difícil e moroso fazer o restauro.

Um pequeno biombo separa as duas monjas. "É para cada uma sentir o seu espaço de solidão", diz Maria do Rosário. Filipa ri de novo: "Mesmo assim, dá para mandar umas bocas daqui."

É um trabalho "bonito, criador, pacificador", que "não deixa de ser arte", diz a irmã Filipa. Um trabalho moroso e lento: um manto de uma imagem da Maia esteve três anos no mosteiro. "Se cobrássemos o custo real, seria uma fortuna. É um trabalho artesanal, uma ajuda à Igreja."

E uma ajuda a quem precisa: ao lado das bancadas onde estas duas irmãs trabalham, estão dois teares. Para tecer a lã das três dezenas de ovelhas criadas na quinta do mosteiro. Saem daqui mantas para as monjas, se necessário, mas sobretudo para os pobres que pedem socorro.

Nem de propósito, a irmã Filipa estava a ler um texto do evangelho de São João. É quando Jesus lava os pés aos discípulos como gesto simbólico do serviço: "Se eu, o senhor e o mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros."

Completas
Vozes para lá do tempo


Na oração de completas, é a irmã Filipa que substitui a madre Vera Maria, ausente para uma consulta com outra irmã. A igreja está ainda na penumbra quando, às 20h40, o sino roda contra o céu que entretanto se nublara, convocando as monjas para a oração. São três sinos, toca normalmente o do meio, um acorde perfeito de Mi maior. Corre uma brisa a tranquilizar o calor quase estival que fizera durante o dia.

"Em vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito", cantam as monjas, seguindo a irmã Filipa. Cruza-se a harmonia do canto com os chilreios que subsistem, o ladrar dos cães da aldeia ou o motor de algum carro ou moto que passa de quando em vez. O coro está iluminado apenas por um foco por cima de cada lugar.

São vozes para lá do tempo, suspensas da eternidade. Mas estão agora tão suaves quanto de manhã cedo, mais do que nas orações da tarde ou do meio-dia. Como quem já quer descansar do dia.

Além dos focos, está aceso o círio pascal e outras quatro velas, junto à imagem da Senhora do Carmelo. Os únicos pontos de luz na igreja. Vem à memória Jorge de Sena: "Uma pequena luz/ que vacila exacta/ que bruxuleia firme/ que não ilumina apenas brilha." Ou um hino da liturgia das horas, cantado nos mosteiros: "Luz terna, suave, no meio da noite,/ Leva-me mais longe..."

Os sete tempos diários de oração são o centro da vida do carmelo. Às seis da manhã (as monjas levantam-se às cinco e meia), rezam-se as vigílias, seguidas de oração pessoal silenciosa e das laudes, ou oração da manhã, antes de novo silêncio e da hora tércia. Ao meio-dia rezam-se a hora sexta e noa, juntas por uma razão prática. Às 17h25, são rezadas as vésperas (oração da tarde), seguidas da missa. Às 20h45, a oração da noite, ou completas.

Há uma diferença deste carmelo para a maior parte dos mosteiros de clausura: a oração é aberta a quem nela quiser participar. A opção vem de há uns 15 anos, ainda no Porto, tomada pela comunidade - qualquer decisão sobre a vida do carmelo é de todas as monjas. E traduz-se mesmo na organização do espaço: o coro das monjas está no meio da igreja e junto das pessoas. "Queremos ser uma única assembleia, com estilos de vida diferentes."

"Pretendemos ajudar as pessoas a encontrar Deus, sem deixarmos o nosso estilo de vida", explica a madre Vera Maria. De vez em quando, aparece alguém de manhã ou na oração do meio-dia. Ao domingo, vem muita gente para a missa, mas na oração da tarde - é hoje o caso - há uma dúzia de pessoas (mas chega a haver 15 ou 20) a rezar com as monjas.

Há solenidade em cada gesto. Antes de rezar, procura-se a tranquilidade necessária para o tempo de oração. As monjas vão-se concentrando na statio. Uma espécie de antecâmara onde cada uma veste a capa branca, que pretende ser símbolo de festa, e pára por quatro ou cinco minutos. Voltam-se todas para a parede de frente, onde uma iconóstase ajuda a concentrar: o ícone da Trindade, de Rubliov, mais um de Nossa Senhora, outro com o rosto de Jesus e ainda dois anjos.

À excepção da imagem da Virgem do Carmelo, as esculturas no mosteiro estão guardadas para o claustro. "Preferimos os ícones. O facto de não ser tridimensional torna-o mais imaterial", explicara Vera Maria de manhã. "O ícone é uma escrita, não uma pintura, é catequese, uma presença do que representa."

Quando o canto irrompe, com o órgão, começa a oração. Os hinos das laudes e das vésperas são cantados alternadamente em duo, soprano e contralto, ou em coro. A música parece nascer de todos os cantos da igreja. A acústica da igreja amplifica o efeito, como um surround, um eco que devolve a harmonia. Se existem anjos, as suas vozes podem ser parecidas com estas. Ao lado de cada partitura, há uma reprodução de um ícone. A luz, filtrada pelos vitrais, espelha-se no mármore branco do chão.

Na oração, seguem o ofício da liturgia das horas, que há séculos ritma a vida dos mosteiros. Mas no Carmelo do Coração de Maria cantam-se todos os salmos, ao contrário do que acontece em alguns conventos ou mosteiros ou no texto oficial da liturgia das horas, em que os textos são seleccionados.

Há uma harmonia quando se sentam, quando se levantam. Ou mesmo quando os passos apenas deslizam, quase levitam, caminhando em fila, no final da oração, em direcção ao refeitório. Escuta-se apenas o canto do salmo 130: "Senhor, ouve a minha prece (...) Em ti encontramos o perdão (...) A minha alma volta-se para o Senhor, mais do que a sentinela para a aurora."

A comunidade
Lugares de hospitalidade e solidão


Sentam-se à volta da mesa comprida e rectangular, apenas interrompida pela cadeira e pelo ambão onde uma monja se senta a ler diariamente (excepto aos domingos) uma obra de espiritualidade ou teologia. Nesta semana, é à irmã Gabriela de Santa Maria que calha ler algumas páginas de Jesus - Uma Abordagem Histórica, do biblista espanhol José Antonio Pagola. Uma obra que alguns bispos espanhóis consideraram pouco ortodoxa, quando foi publicada há pouco mais de dois anos.

No excerto de hoje, Pagola fala do modo como Jesus lidava com os mais desprotegidos do seu tempo, considerados impuros: "Jesus introduzia assim uma verdadeira revolução. O "código de santidade" gerava uma sociedade discriminatória e exclusiva. O "código da compaixão" proposto por ele gerava uma sociedade compassiva, acolhedora, inclusiva, mesmo até para esses sectores sem honra nem respeitabilidade. A experiência que Jesus tinha de Deus não levava à separação ou à exclusão, mas ao acolhimento, ao abraço e à hospitalidade."

Foi por se sentir acolhida que a irmã Anabela de Jesus, 39 anos, decidiu vir para o carmelo de Bande, há quatro anos e meio. Licenciada em Educação Social, trabalhou com sem-abrigo e, antes, como operária fabril. Uma passagem por Taizé, a comunidade monástica ecuménica do Sul de França que reúne católicos e protestantes, fê-la pensar que estava a "fugir do projecto de Deus".

É uma das três que ainda não fizeram a profissão solene, ou os votos perpétuos, como se dizia - o tempo de preparação dura até seis anos. A irmã Maria do Rosário, 33 anos, no mosteiro há cinco, fará a profissão solene em Julho. Chegou a estagiar como professora do ensino básico. Mas, como sempre sentira o apelo da vida religiosa, decidiu experimentar o carmelo depois de uma passagem da madre Vera Maria pela sua paróquia, em Vale de Cambra. "Às vezes tenho saudades dos meus meninos, mas Deus preenche tudo."

Numa comunidade predominantemente jovem, a irmã Maria de São José está há mais tempo no mosteiro: 48 anos. Leva-nos pelo caminho do pequeno cemitério, por entre medronhos, frutos silvestres, morangos, framboesas, ervas aromáticas, plantas medicinais, cerejeiras e um jardim das oliveiras que teimam em crescer. Há ainda outro pequeno bosque com noivas-da-floresta, árvores de folha caduca e tronco branco.

"Quando fazemos o nosso retiro, tudo isto é repousante." Adivinha-se que sim, com este final de tarde tranquilo e a luz límpida que agora domina o carmelo.

No cemitério, repete-se de novo o motivo da cruz da ordem de Cristo e ali repousam já três corpos: duas monjas do carmelo e o padre Manuel, monge que viveu quatro anos num dos eremitérios junto da hospedaria - e que servem para as irmãs passarem alguns dias no ano numa solidão mais vincada. Os corpos são enterrados sem urna, outra opção da comunidade. A prioreza desce à cova para receber o corpo. O coveiro vai deitando terra lentamente, monjas e magnólias por testemunhas.

"Tripeira de gema", a irmã Maria de São José não sabe ainda se irá à missa com o Papa, no Porto. Lá estarão seguramente algumas das monjas. "Pela presença e para mostrar que estamos com ele, com tudo isto que se está a passar na Igreja."

Na cela, daí a pouco, a irmã Maria de São José lê os escritos de Isabel da Trindade (1880-1906), carmelita francesa que viveu apenas cinco anos no mosteiro. A cela é o lugar da solidão. "O sítio onde mais gostamos de estar." Um lugar despojado: além da cama e da casa de banho, há um canto de oração, uma secretária de leitura e duas pequenas mesas.

"Caminhai em Jesus Cristo, enraizada nele", escrevia Isabel da Trindade. "A nossa vida é como a raiz, uma vida escondida...", diz agora a irmã Maria, que esteve quase para fazer Economia, tirou o curso para ser professora primária e acabou com "Jesus no meio do caminho". Foi quando um dia se viu a rezar, "qualquer coisa" lhe tocou e passou "uma noite sem dormir".


O espaço
Despojamento e criação


O despojamento é o traço arquitectónico do mosteiro e da igreja. Os vitrais da charola da igreja vieram do Porto. Representam símbolos marianos, eucarísticos e as armas do carmelo - a flor-de-lis da fundadora, Mariana Ignez de Sampayo y Mello Bourbon, da família dos Bourbons; o escudo martelado, por ser uma ordem medieval; a cruz de Cristo, porque a família de Mariana Inês estava muito ligada à Ordem de Cristo; e a esfera armilar, símbolo do diálogo com outras culturas.

"Já não só com outras culturas, mas também com outros credos", diz Vera Maria. E esta dimensão traduzida nas armas "corresponde à vocação da comunidade".

Os vitrais da parede lateral são contemporâneos, pintados pela madre do carmelo. Três dípticos, sempre com inspiração bíblica, que falam da criação do mundo: "O espírito de Deus pairava sobre as águas"; da nova criação trazida por Jesus: "Eis que faço novas todas as coisas"; e da vida monástica como radicalidade do cristianismo: "O homem que coloca a confiança em Deus é como a árvore plantada à beira do rio..."

O presbitério, a zona elevada onde está o altar, é circular, uma tradição em muitas igrejas abaciais. O altar é uma pedra única, de oito toneladas. Não há outros adornos que não sejam alguns vasos e jarras com plantas e flores e dois ícones.

Jesus crucificado e ressuscitado está no maior. É semelhante a uma pintura de afresco que se pode ver na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, está a ser "escrito" também pela madre Vera Maria. "Jesus não morreu sozinho, houve testemunhas cósmicas - o sol e os astros escureceram", diz, justificando a presença do sol e da lua. A mãe de Jesus também é representada, em contemplação. A pintura mostra um contraste, entre a noite do universo e a luz que irradia das testemunhas. E, em grego, lê-se: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida."

No segundo, está Maria Madalena. "Se calhar é a primeira apóstola, é ela que vai anunciar a ressurreição de Jesus", diz a madre do carmelo. Na frase, a expressão de dúvida apenas suaviza a convicção.

O outro espaço importante é o claustro. Uma fonte no meio, a recordar as referências à "água viva", tantas vezes presente na Bíblia. De novo a cruz de Cristo, omnipresente no mosteiro. "Queríamos continuar a mergulhar raízes na grande tradição monástica. O claustro une os lugares comuns e as celas. É quadrado, como símbolo do paraíso."

Com a ajuda do arquitecto Alexandre Rodrigues, o carmelo fez também opções ecológicas: águas sanitárias aquecidas por painéis solares, a igreja mantida a 15 graus de temperatura com aquecimento geotérmico. A enfermaria comunica com o mosteiro só por um lado, permitindo visitas de familiares quando há doenças terminais ou mais prolongadas.

Ao fundo da quinta, 200 metros andados, está a hospedaria. Para silêncio, reflexão e paz, aberta a crentes de qualquer religião e a não-crentes, diz a madre do carmelo. São 13 quartos, com as regras do respeito pelo silêncio e da participação nas orações. No caminho, encontramos José Freitas Rodrigues e a mulher, Ana Maria. Ele, piloto aposentado da Força Aérea, ela, doméstica.

São os pais da irmã Filipa. Passam aqui algumas temporadas, tomando conta da hospedaria, fazendo pequenas tarefas, dedicando-se à comunidade e à liturgia - José Rodrigues compõe também e alguns dos cânticos são de sua autoria. E canta, nas orações em que participa: "Estou aqui para lhes dar música. Se ouvirem uma irmã de voz grossa na igreja, sou eu", avisa.

Também eles trocaram a longa viagem que queriam fazer quando o marido se reformou pela dedicação ao mosteiro, depois da prioreza lhes pedir esse apoio. Mas não é um truque para ver a filha: "São todas nossas filhas. Vemos a irmã Filipa uma vez por mês, como acontece às outras irmãs com os seus familiares. Às vezes é mais fácil falar com as outras."

Filipa confirma: "Quando por vezes me cruzo com eles na quinta, digo bom dia senhor Rodrigues, bom dia dona Ana Maria."

Às sete da tarde é a ceia ligeira. Antes de uma hora livre, que cada uma ocupa livremente - pode ser a passear, a rezar, a escrever, a tratar da sua roupa, a ler algum livro da vasta biblioteca. Depois da oração de completas, sobram uns 30 ou 40 minutos para pequenas tarefas, antes de todas apagarem a luz às 22h.

Na oração de vésperas, ao final da tarde, as monjas cantavam o salmo 138: "Senhor, tu conheces-me, sabes quando me sento e quando me levanto; vês-me quando caminho e quando descanso; estás atento a todos os meus passos."