A Igreja que ultimamente tanto tem censurado o consumismo, a liberdade extrema, o culto do prazer, o vício da comunicação virtual, a Igreja tradicional, virtuosa e exemplar, encontra-se em fase adversa. Desde a primeira hora, a denúncia de impunes casos de pedofilia tem sido tema principal de crítica às autoridades religiosas, que ocultam, disfarçam, desdizem. Por estes dias e em auge de crise, o Papa Bento XVI determinou o apuramento de culpa e a acção penal, com o cancelamento da prescrição para estes crimes. A atitude é contemplada com o aplauso dos observadores que assim descobrem uma mudança no tom de autoridade absoluta que Bento XVI tem praticado, em todos as circunstâncias do seu mandato.
Em tempo de vinda do Papa a Portugal, toma maior importância a ideia, para quem o seja, de se ser uma/um entre os mais de mil milhões de católicos unidos no espírito do Evangelho, neste mundo. Olhando as pessoas, no que delas nos separa, pela multiplicidade de linguagens, costumes, culturas, é espantosa e fascinante a universalidade da Igreja católica (do grego katholicos, universal). Universal porque envolve a infinidade de diferenças nos modos de vida, nos percursos, nas experiências, nas escolhas que fazem a singularidade sagrada de cada ser humano. E universal porque estes católicos estão unidos em comunidades plurais de fé e de pertença, na revelação de Cristo Jesus e no reconhecimento do Papa como sucessor de Pedro em Roma. Da universalidade da Igreja decorre a esperança de que intervenha nos desajustes e injustiças, nas desigualdades e convulsões sociais, nas situações de guerra, de agressão e violência. Mas em séculos de História, nem sempre o sentido evangélico da vida foi verdade e em fases sombrias se apagou o amor cristão. Em contraste com a sua importância no desenho da civilização europeia, na educação, na cultura e arte, na saúde, a Igreja atravessou guerras religiosas, empenhou-se nos actos da Inquisição, firmou o antijudaísmo como quase afirmação de princípio.
A Igreja católica sobrevive ao progresso do islão, à sedução das Igrejas evangélicas, ao avanço das religiões orientais. O nome de Deus é motivo de debate público e os católicos procuram definir a sua identidade, assumem posições, estão em redes de comunicação para o testemunho da Palavra. E a secularização, ao contrário do que pretendem os conservadores, não desencadeou descrença nem crise. Pelo contrário. Entre os católicos de hoje, ganham maior espaço de expressão os reformistas que procuram a inteligência da fé, se afirmam como povo de Deus e pretendem não ser silenciados por decisão do Papa ou palavra da Cúria Romana. A desejada liberdade de diálogo não é atentado contra a Igreja, mas é direito do povo de Deus ao esclarecimento, à partilha, à intervenção, à decisão. A colegialidade no exercício do poder e a descentralização desse poder, com a maior autonomia das conferências episcopais, são passos urgentes para o desejado futuro da Igreja.
Assim, ganha maior sentido a petição de católicos austríacos e alemães ao Papa João Paulo II para a reforma da Igreja, logo apoiada por três milhões de assinaturas, um milhar em Portugal, e entregue na Santa Sé em Outubro de 1997, ponto de partida para o Movimento Wir Sind Kirche, Nós Somos Igreja. A petição pretende uma Igreja fraterna, de proximidade, em que as Igrejas locais possam escolher os seus bispos. Uma Igreja que tenha uma nova atitude face às mulheres, chamadas à santidade e salvação, mas excluídas dos ministérios ordenados. Que não imponha o celibato ao clero secular. Que valorize a sexualidade, admita a consciências dos fiéis, respeite as suas orientações sexuais, condene o abuso sexual. Uma Cúria Romana que não persiga as teólogas/os que repensam a mensagem cristã. Uma Igreja empenhada na globalização dos direitos humanos e na preservação da natureza. Hoje, a estrutura internacional dos grupos Nós Somos Igreja, o IMWAC, existe em 20 países e está ligada em rede a outros grupos reformistas que envolvem milhões de leigos, padres e membros de ordens religiosas.
Em 11 de Outubro de 1962, o Papa João XXIII abria o Concílio Vaticano II para decifrar os sinais dos tempos. Em 8 de Dezembro de 1965, o Papa Paulo VI aceitou esses sinais, para uma Igreja de Roma renovada no mundo. Esperamos que o Papa Bento XVI deixe memória do tempo que vivemos, pela concretização das reformas já propostas, ainda por cumprir.
Jornalista, escritora, membro do Movimento Nós Somos Igreja