O último episódio de
Crónica do Século, da RTP, constituiu o culminar de um processo de reconstrução
ideológica da História de Portugal dos últimos cem anos: a versão PS da História
de Portugal.
O momento apoteótico foi o da "reconstituição histórica". Noutros episódios,
vimos o juramento dos carbonários, os assaltos ao comércio ou a matança do
primeiro-ministro António Granjo - nada que se compare com o final da série,
que nos deu um dos mais importantes momentos da história do século XX português:
o pequeno "Tóni", António Guterres, menino bem comportado, circulando nas
ruas de Donas, na Beira Baixa!
Nem a propaganda do regime fascista chegou ao ponto de "reconstituir" a infância
dos ditadores Salazar e Caetano. Foi necessário esperar 25 anos de democracia
para vermos na televisão do Governo uma recriação ficcional da perfeição idílica
da infância do actual primeiro-ministro. Em termos de propaganda, há ditaduras
que têm muito a aprender com o PS de Guterres e Jorge Coelho.
O episódio da Crónica tinha, desde logo, um título enganador: "Os Governos
de Maioria (1985-1999)": nem o primeiro governo de Cavaco Silva nem os dois
governos de Guterres são de maioria. Mas a mitificação torna necessário que
Guterres seja apresentado como autor de uma vitória que nunca teve, a maioria
absoluta.
O episódio apresentava uma análise da História recente que era esta: Mário
Soares fez o sacrifício de salvar Portugal com os seus governos constitucionais;
mas dois anos de Cavaco 85-87, tornavam impossível o regresso do PS ao governo,
porque o povo não reconhecia esse trabalho salvífico. Soares, eleito Presidente,
achou que o melhor era haver mais Cavaco - foi ele próprio, Soares, que se
apresentou na série como o responsável do cavaquismo: se não fosse ele a convocar
eleições, Cavaco não teria sido primeiro-ministro em 87.
Mas, disse-nos a Crónica, os anos de Cavaco foram só de obras públicas com
os dinheiros da Comunidade Europeia e uma interminável agitação social. Como
sempre, o PCP que se auto-exclui era o único a fazer essa agitação.
Os chefes de governo foram "revelados" pela série através da sua infância
e juventude, ambos colocados na província. "O Aníbal", sujeito a uma disciplina
férrea, era "autoritário". Já "António" vicejava na tal infância idílica por
entre granito e a presença de Deus.
A reconstituição em vídeo do menino Tóni tocando nas pedras de granito da
aldeia de Donas remeteu ideológica e visualmente para os tempos de antena
do PS em 99 que mostravam o líder Guterres encostado ao granito da igreja
da aldeia.
O texto que acompanhava as imagens também criava a mesma relação Guterres-granito-Deus.
Dizia: na igreja, "Tóni" "é o escolhido para ler a epístola." Foi a primeira
vez que na propaganda política portuguesa notei o uso da expressão "o escolhido",
de ressonância bíblica ("Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos",
S. Mateus, 22:14). É raro encontrar-se num país democrático esta linguagem,
de teor religioso, de "revelação" dum futuro líder da Pátria.
Mas a mitificação dos personagens históricos tem sempre que apagar as partes
que não se encaixam no mito. O "Tóni" entrou num ápice para o Técnico e passou
directamente para a campanha eleitoral de 1995. Nada aconteceu no intervalo.
Tal como nas fotografias "stalinistas" se apagava Trotski, Guterres não conspirou
contra Jorge Sampaio (que é, aliás, diminuído de propósito na série, aparecendo
apenas numa imagem um pouco apalhaçada em que é beijado por travestis). Passamos
do Tóni das epístolas para o candidato limpo que denuncia o clientelismo do
governo anterior ao seu, numa recordação que não colocou em perspectiva o
assalto do PS ao aparelho de Estado desde 1995 até 2000.
No PS, a série passa de Soares para Guterres, esquecendo Sampaio e Vítor Constâncio
(inexistente no episódio, excepto para ser condenado por Soares). Entretanto,
a oposição existe? Claro, pois esta propaganda é democrática. Que vemos? Fernando
Nogueira perdedor - e Paulo Portas, o que deixa passar os orçamentos do governo
de "maioria", sugerido como eventual vencedor dos referendos do aborto e da
regionalização, quando os mesmos foram propostos por Marcelo Rebelo de Sousa.
Nada de grave, já que os referendos foram apresentados como uma derrota da
democracia devido ao nível da abstenção, sendo por isso irrelevante a sua
realização e os resultados.
Tal como os restantes episódios, este recorreu o mínimo possível aos testemunhos,
deixando para os historiadores (a omnipresente voz off) a versão da História
quando os vivos poderiam tê-la contado. Não percebo, aliás, como pôde um historiador
conceituado como António José Telo emprestar o seu nome ao último episódio
da série, um documento completamente alheio aos valores da História-ciência.
No conjunto, a Crónica do Século passou sem deixar rasto. Não ensinou os que
não sabiam e não acrescentou nada aos que já sabiam. A estes, a visão enviesada
dividiu-os, em vez de lhes dar uma História com que todos se identificassem.
Os bons momentos da série, como os do 8º episódio, "O Terramoto Delgado",
assinado por Manuela Martins, e do 11º, "Dois anos que abalaram Portugal",
por Alberto Serra, perderam-se numa iniciativa burocrática, sem vivacidade,
e manchada pela perspectiva histórica do partido do Governo. Foi o que nos
dizem ser "serviço público" em todo o seu esplendor.
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A
crónica do século
A
história oral
na televisão
Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2000
A
voz "off" do século
Sexta-feira, 31 de Dezembro de 1999
Um
século sem gente dentro
Segunda-feira, 6 de Dezembro de 1999
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