Avançando até aos
anos 40,
a série "Crónica do Século" (RTP1, segundas) pôde ganhar a vivacidade dos
testemunhos directos.
Se do período final da 1ª República e do início da Ditadura o número foi ainda
reduzido, já do triénio da Guerra Civil de Espanha foram inúmeros os testemunhos
vividos.
O 3º episódio tinha por missão mostrar como a República entrara num beco sem
saída: não acomodava politicamente a maioria dos portugueses e criava anticorpos
mesmo entre os burgueses que abriram as varandas para aclamá-la em 1910.
O momento mais forte do episódio não resultou, todavia, dos depoimentos ou
de imagens de arquivo, mas da reconstituição da tenebrosa «Noite Sangrenta»
de 1921: um dos grupos extremistas do partido no poder, de Afonso Costa, assassinou
friamente o primeiro-ministro, António Granjo, e dois fundadores da República.
A reconstituição, com meios simples, foi muito eficaz na revelação deste terrorismo
quase de Estado. A República, ao matar, matava-se a si mesma. A mudança também
não era possível por meios constitucionais, o que levou o Presidente Manuel
Teixeira Gomes a demitir-se (1925) e a emigrar no primeiro navio, momento
simbólico que poderia ter sido mais desenvolvido.
O 3º programa teve outros momentos cativantes, como a referência à Monarquia
do Norte (1919) ou as imagens iniciais dos campos e do cemitério português
de La Lys (1918).
Outro episódio que ficou bem explicado foi o da motivação do assassino de
Sidónio Pais: José Júlio da Costa dera certa vez a sua palavra aos conterrâneos
do Vale de Santiago de que não haveria repressão porque acreditara na palavra
das autoridades. Enganado, enganou. Decidiu vingar-se no Presidente. Não foi,
portanto, um crime político, mas uma vingança para desagravo da honra, o que
se enquadra no crime de sangue típico em Portugal.
Mas, tal como os dois primeiros episódios da "Crónica do Século", o 3º tinha
uma estrutura que remetia mais para a linguagem escrita do que para a linguagem
televisiva. Optando por abordar muitos casos e muitos episódios, com uma ligação
frouxa entre os temas, o programa falhou em agarrar os temas fundamentais
e em desenvolvê-los. Perder-se-ia alguma informação adicional (que de qualquer
forma o espectador não guarda), mas garantir-se-ia um fluxo mais coerente,
mais televisivo.
A voz off (isto é, texto lido) controlou a narrativa e foi uma vez mais transformada
na verdade histórica da série, o que enfraquece o seu poder televisivo. Ao
deixar para a voz off o estabelecimento da sua verdade histórica, a série
sai diminuída. Nota-se também alguma falta de rigor na ligação das imagens
às palavras. Por exemplo, mostrar a cruz gamada dos nazis (anos 30) a propósito
de Sidónio (1917-18) tende mesmo a ser uma manipulação histórica.
O 4º episódio, dedicado aos anos da Ditadura Militar e de consolidação da
ditadura pessoal de Oliveira Salazar, deixou claro que a queda da República
era inevitável às mãos do Exército e que a perspicácia e capacidade política
de Salazar acabou por levar de vencida os militares conservadores moderados
sem programa e os jovens fascistas do Nacional-Sindicalismo.
Mas, uma vez mais, a ânsia de dizer mais do que o essencial levou os autores
do 4º programa a misturarem temas sem necesssidade e até a resvalarem para
o abuso dos documentos e testemunhos. Toda a parte dedicada às artes e espectáculos
estava a mais neste programa. Além disso, foram incluídos depoimentos de dois
pides que não poderiam posicionar-se no período de 1926-33 porque estiveram
na polícia política muito mais tarde. Uma parte importante das imagens deste
episódio não se reportava ao período.
A escolha de alguns extractos dos depoimentos é questionável. Teve pouco sentido
ouvirmos no 3º episódio o antigo soldado de La Lys dizer que Sidónio Pais
«não devia ter nascido», pois não só o seu rancor se baseava num facto errado
(o de que seria Sidónio o responsável pelo abandono do Corpo Expedicionário
Português), como exprimia uma opinião tão forte que se transformou em ponto
de vista do próprio programa. No 4º programa, foi totalmente condenável que
se incluísse um depoimento dum pide troglodita negando a existência de torturas,
etc. Trata-se de uma mentira que terá interesse numa reportagem ou num programa
de informação mas não num documentário histórico. Ao incluir-se a mentira
está a aceitar-se que ela seja uma hipótese de verdade histórica.
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A crónica do século
Um
século
sem gente dentro
Segunda-feira, 6 de Dezembro
de 1999
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