Eduardo Cintra Torres
:A voz "off" do século


Avançando até
aos anos 40
, a série "Crónica do Século" (RTP1, segundas) pôde ganhar a vivacidade dos testemunhos directos.
Se do período final da 1ª República e do início da Ditadura o número foi ainda reduzido, já do triénio da Guerra Civil de Espanha foram inúmeros os testemunhos vividos.
O 3º episódio tinha por missão mostrar como a República entrara num beco sem saída: não acomodava politicamente a maioria dos portugueses e criava anticorpos mesmo entre os burgueses que abriram as varandas para aclamá-la em 1910.
O momento mais forte do episódio não resultou, todavia, dos depoimentos ou de imagens de arquivo, mas da reconstituição da tenebrosa «Noite Sangrenta» de 1921: um dos grupos extremistas do partido no poder, de Afonso Costa, assassinou friamente o primeiro-ministro, António Granjo, e dois fundadores da República.
A reconstituição, com meios simples, foi muito eficaz na revelação deste terrorismo quase de Estado. A República, ao matar, matava-se a si mesma. A mudança também não era possível por meios constitucionais, o que levou o Presidente Manuel Teixeira Gomes a demitir-se (1925) e a emigrar no primeiro navio, momento simbólico que poderia ter sido mais desenvolvido.
O 3º programa teve outros momentos cativantes, como a referência à Monarquia do Norte (1919) ou as imagens iniciais dos campos e do cemitério português de La Lys (1918).
Outro episódio que ficou bem explicado foi o da motivação do assassino de Sidónio Pais: José Júlio da Costa dera certa vez a sua palavra aos conterrâneos do Vale de Santiago de que não haveria repressão porque acreditara na palavra das autoridades. Enganado, enganou. Decidiu vingar-se no Presidente. Não foi, portanto, um crime político, mas uma vingança para desagravo da honra, o que se enquadra no crime de sangue típico em Portugal.
Mas, tal como os dois primeiros episódios da "Crónica do Século", o 3º tinha uma estrutura que remetia mais para a linguagem escrita do que para a linguagem televisiva. Optando por abordar muitos casos e muitos episódios, com uma ligação frouxa entre os temas, o programa falhou em agarrar os temas fundamentais e em desenvolvê-los. Perder-se-ia alguma informação adicional (que de qualquer forma o espectador não guarda), mas garantir-se-ia um fluxo mais coerente, mais televisivo.
A voz off (isto é, texto lido) controlou a narrativa e foi uma vez mais transformada na verdade histórica da série, o que enfraquece o seu poder televisivo. Ao deixar para a voz off o estabelecimento da sua verdade histórica, a série sai diminuída. Nota-se também alguma falta de rigor na ligação das imagens às palavras. Por exemplo, mostrar a cruz gamada dos nazis (anos 30) a propósito de Sidónio (1917-18) tende mesmo a ser uma manipulação histórica.
O 4º episódio, dedicado aos anos da Ditadura Militar e de consolidação da ditadura pessoal de Oliveira Salazar, deixou claro que a queda da República era inevitável às mãos do Exército e que a perspicácia e capacidade política de Salazar acabou por levar de vencida os militares conservadores moderados sem programa e os jovens fascistas do Nacional-Sindicalismo.
Mas, uma vez mais, a ânsia de dizer mais do que o essencial levou os autores do 4º programa a misturarem temas sem necesssidade e até a resvalarem para o abuso dos documentos e testemunhos. Toda a parte dedicada às artes e espectáculos estava a mais neste programa. Além disso, foram incluídos depoimentos de dois pides que não poderiam posicionar-se no período de 1926-33 porque estiveram na polícia política muito mais tarde. Uma parte importante das imagens deste episódio não se reportava ao período.
A escolha de alguns extractos dos depoimentos é questionável. Teve pouco sentido ouvirmos no 3º episódio o antigo soldado de La Lys dizer que Sidónio Pais «não devia ter nascido», pois não só o seu rancor se baseava num facto errado (o de que seria Sidónio o responsável pelo abandono do Corpo Expedicionário Português), como exprimia uma opinião tão forte que se transformou em ponto de vista do próprio programa. No 4º programa, foi totalmente condenável que se incluísse um depoimento dum pide troglodita negando a existência de torturas, etc. Trata-se de uma mentira que terá interesse numa reportagem ou num programa de informação mas não num documentário histórico. Ao incluir-se a mentira está a aceitar-se que ela seja uma hipótese de verdade histórica.

 

 

A crónica do século

 

 

Um século
sem gente dentro

Segunda-feira, 6 de Dezembro de 1999