O conhecimento
do
Portugal dos últimos
cem anos tem avançado a passos de gigante, mas ainda não «estabilizámos» no
passado que «queremos ter». O século XX tem ainda poucos acontecimentos e
pessoas que «unam» os portugueses ou sobre os quais eles estejam de acordo,
o que acontece menos com os tempos antigos.
Falar dos protagonistas do século XX é falar de pessoas que dividem os portugueses.
Nem é preciso chegar a Salazar ou a figuras mais recentes, basta recordar
as opiniões opostas que a sociedade tem (quando tem) sobre D. Carlos, Afonso
Costa ou Sidónio Pais.
A história ainda se está a fazer, não só pelos historiadores mas ao sedimentar-se
na memória de todos. A ciência histórica tenta dar lógica à realidade, o que
só pode acontecer no pensamento, porque só o pensamento tem lógica, a realidade
não.
O que deve fazer uma série de TV de «grande produção» sobre o século XX português?
Dar os acontecimentos, factos, factos e mais factos. Deixar que a lógica dos
acontecimentos seja dada pelos testemunhos, fornecendo ao espectador um percurso
histórico em direcção ao nosso tempo, criando ligações entre os acontecimentos
e tendências. No fundo, criar uma narrativa que tem de ser estruturalmente
oral (nunca escrita) mesmo antes de ser figurativa.
O primeiro aspecto
estrutural que salta à vista na série "Crónica do Século" (RTP1, segundas)
é a inexistência dum sólido fio condutor. Falta sentido narrativo, quanto
mais sentido histórico. Não basta ter bons consultores históricos, como esta
série tem em António José Telo e Fernando Rosas. Eles garantiram o rigor científico,
mas não podem fornecer rigor televisivo, que foi o que faltou nos dois primeiros
episódios.
O primeiro episódio era o mais ingrato de construir, não só por ser o primeiro
mas por ser do período em que recolher depoimentos de testemunhas é já muito
difícil. Tanto mais que, em vez de optar pelo século cronológico ou por um
«pequeno século XX português» (por exemplo, começar no Regicídio, o que daria
recuo para a Monarquia e anteciparia a República), a série optou pelo «longo
século XX» que começa em 1890 com o Ultimato.
As consequências desta decisão marcaram o episódio: constantes saltos no tempo,
entrega de grande parte da narrativa à voz off, pouca profundidade na apresentação
dos temas devido à sua profusão.
Os testemunhos de centenários ou quase centenários foram pouco utilizados.
Não foram transformados no fulcro da série. Em vez disso, os motores principais
foram historiadores. Essa foi uma decisão capital nos dois primeiros episódios.
Quer dizer, em vez de História feita pelos que a viveram tivémo-la feita pelos
seus intérpretes presentes. Os acontecimentos são filtrados pela visão dos
historiadores. E, como o colectivo português ainda não «estabilizou» o seu
passado, a autora do primeiro episódio (Margarida Metello) teve de colocar
em confronto posições opostas de historiadores, Oliveira Marques e Veríssimo
Serrão. Ora, no âmbito duma série panorâmica, isso significa uma fuga da narrativa
para a análise, ainda por cima sem conclusão. É duvidoso que os espectadores
estejam à espera, em televisão, de uma História Geral de Portugal opinativa
e inconclusiva. Foi uma opção que resultou em perda de eficácia televisiva.
Essa eficácia ficou ainda mais atingida com o segundo filtro que se interpôs
entre a História e o espectador: a voz off domina em absoluto. Isso aconteceu
também no segundo episódio, onde, apesar de mais testemunhos, a sua presença
não era estrutural mas superficial: os testemunhos das «pessoas normais» sobre
o tempo que viveram aparecem quase sempre como coisa do outro mundo em ligação
aos episódios. São muletas, não são o cerne da questão. Aparecem ali a provar
o que os historiadores (analistas) dizem hoje, a cem anos de distância, quando
deveria ser o contrário.
Este pouco apreço pelos testemunhos orais representa uma atitude verdadeiramente
antitelevisiva nesta série. De facto, onde a TV pode realmente suplantar o
livro e a imprensa é apenas nesta relação vital e directa que o testemunho
vivo, a História oral, permite estabelecer entre o espectador e o passado,
pela mesma razão que Sócrates duvidava da capacidade de a comunicação escrita
permitir o acesso aos «princípios essenciais da verdade». A possibilidade
desta série nos aproximar dos «princípios essenciais da verdade» é posta em
causa quando em vez de se valorizar os testemunhos do século os episódios
valorizam a palavra escrita (os textos em voz off) e os seus representantes
(os historiadores).
Os dois episódios pareciam não ter estrutura. Havia uma miríade de temas que
não se enlaçavam. Um bocadinho de social, de político, de económico, de relações
internacionais, de povo, disto e daquilo. O espectador perde-se. Gustave Flaubert
dizia: onde falta a forma, falta a ideia.
A direcção da série não optou por uma «História do Povo», como a BBC, o que
não tem qualquer problema, mas a questão está em que parece não ter optado
por nada. Onde estão as linhas de força do século XX? Onde estão os portugueses?
Se o povo era apenas pano de fundo, onde estão então os verdadeiros protagonistas?
Quem era verdadeiramente Afonso Costa? Como era ele? O que queria? E o rei?
E João Franco? Onde estão os retratos televisivos?
A agravar, o segundo episódio (de Maria Augusta Seixas) tinha uma visão muito
específica da história, maçónica e enviesada. A Maçonaria - veja-se só! -
«preocupava-se sobretudo com a instrução do povo». O episódio tinha aspectos
ridículos, como a chegada de Jorge Sampaio, recebido por João Soares, à porta
dos Paços do Concelho, para nos fazer lembrar 1910... Havia indução de erros,
como a apresentação de Fernando Vale como «fundador do Partido Socialista»,
como se essa qualidade de 1973 estivesse alguma vez relacionada com o período
a que o seu testemunho se referia, o princípio do século, época em que, ainda
por cima, havia um Partido Socialista que nada tem a ver com o de 1973.
A RTP apresentou esta "Crónica do Século" como o «Serviço Público de Televisão»,
assim, com maiúsculas. Lamentavelmente, os dois primeiros episódios apontam
para que esta seja uma série burocrática. Falta-lhe garra, falta-lhe calor
e falta-lhe gente, como se a História fosse feita por entidades superiores
e não por pessoas. É a História feita numa repartição.
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A
crónica do século
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