Eduardo Cintra Torres
:A história oral na televisão


Toda a história é uma recriação e uma escolha de informações. O 4º programa da "Crónica do Século" (RTP1, segundas) foi interessante por ter apagado o PCP. Até os testemunhos de operários da Marinha Grande participantes na tentativa de insurreição de Janeiro de 1934 apareciam desgarrados de qualquer ligação política. E, curiosamente, o único tarrafalista entrevistado, Edmundo Pedro, é membro do PS. Esses elementos duma versão cor-de-rosa da História não continuaram nos 5º e 6º programas da série, que foram muito correctos na adequação da narrativa à actual historiografia portuguesa sobre o século XX.
Mas o 5º episódio acentuou uma característica peculiar da série: os depoimentos do povo servem para confirmar a verdade dos historiadores e não o contrário. Pontificou o historiador Fernando Rosas, tudo o resto foi uma emanação do seu discurso. Trata-se dum erro de montagem e, provavelmente, também de atitude dos autores da série. Os depoimentos do historiador e do camponês/testemunha não estiveram ao mesmo nível, como se o valor do que o primeiro diz fosse superior ao que diz o segundo. «Televisivamente» é ao contrário, porque o camponês viveu, viu, ouviu, sentiu os acontecimentos e o historiador não. Repare-se: o camponês é uma fonte histórica, enquanto o historiador depende das fontes. Este episódio colocou-os na situação inversa. Ideologicamente, os dois depoimentos deveriam ser igualados na montagem, cabendo ao espectador - que nunca é passivo - identificar o que é vivência e o que é interpretação.
Quem faz a História oral são os que a viveram, não os historiadores, que estudam documentos. Sem assumirem esta atitude, não era possível aos autores da "Crónica do Século" realizar uma série de História para televisão plenamente satisfatória para o espectador. Além disso, no 5º episódio a nossa História era vista de fora para dentro: partia-se de Espanha para Portugal, o que sendo uma opção possível, retirava força ao fio condutor. A Guerra Civil de Espanha «fez parte» da nossa História, não se manifestou apenas como reflexo. Bastava ter feito a montagem de forma diferente para dar mais dinamismo e força aos testemunhos.
O aspecto mais rico deste episódio foram os inúmeros depoimentos sobre as perseguições de refugiados republicanos espanhóis em Portugal. A quantidade e qualidade dos testemunhos indicava a importância do facto e o seu impacto sobre parte da população raiana: aqui houve realmente História oral em televisão. O tema praticamente dominou o episódio, numa espécie de desvio ao núcleo narrativo da série. Os excelentes elementos recolhidos teriam sido mais valorizados se, ao invés de encaixados todos numa crónica do século português, tivessem constituído o miolo de um documentário histórico independente dedicado a esse tema.
O 5º programa da série era dedicado a Portugal e à II Guerra, mas se o conflito ocupa os anos 1939-45, não entendi o motivo de o programa estar datado 1940-46, tanto mais que começava correctamente com a posição do Governo na eclosão da guerra em Setembro de 39 e terminava com a bomba nuclear em Nagasaki, em 1945.
O aspecto mais sublinhado, com significativos depoimentos, foi o da passagem de refugiados europeus por Portugal, geralmente a caminho dos Estados Unidos, incluindo o heróico feito de Aristides Sousa Mendes no consulado de Bordéus, relatado por um filho e por uma testemunha ocular. Outro episódio que o programa justamente sublinhou foi a invasão de Timor pelos Aliados e depois pelos japoneses, recorrendo a duas testemunhas do horror vividos por portugueses e timorenses. Já na questão do ouro nazi, o programa preferiu alimentar a polémica e, na minha opinião bem, pois é um assunto do momento. De facto, perante um relatório duma comissão oficial que parece preferir uma versão nacionalista à verdade histórica, o programa referiu as opiniões contrárias do historiador António Louçã e das organizações judaicas.
Ao contrário do que sucedeu nos episódios anteriores, este programa colocava correctamente o PCP no seu lugar - organização da segunda onda de greves dos anos de guerra. Num aparte, permitiu observar o desprezo com que ainda hoje o dirigente do PCP Sérgio Vilarigues considera os estudantes em luta em 1944: eram «os filhinhos dos papás». Mas o programa evidenciou também alguns problemas de equilíbrio. De facto, foi mais «importante» no âmbito da sua estrutura a passagem dos refugiados do que as consequências da guerra para a população portuguesa. Também a Exposição do Mundo Português, de 1940, ficou apenas avaliada por uma voz de hoje, da historiadora Raquel Henriques da Silva, o que diminuiu a apreciação do enorme impacto da iniciativa no país.
Quanto à montagem, resultou de mau gosto a passagem das imagens de guerra na Europa com a música da «Lista de Schindler» para imagens de Lisboa ao som de «uma casa portuguesa com certeza». Um pequeno parêntesis descritivo do país no início (igual ao de episódios anteriores) estava manifestamente a mais: via-se que se estava a falar da situação do país apenas por que sim, porque tem que ser sempre assim nestes programas. A falta de rigor na ligação das imagens ao texto esteve menos acentuada do que nos episódios anteriores, mas pareceu-me ver o dirigente nacionalista chinês Jiang Jieshi quando se falava do Japão. Mais absurdo foi, decerto, no 5º episódio dizer-se «ainda hoje são visíveis» nas casas duma aldeia de Trás-os-Montes as marcas de tiros - e essas marcas não eram mostradas ao espectador. Numa série televisiva, o mais trabalhoso são os detalhes, mas são eles que distinguem os programas «bonzinhos» dos programas realmente bons.
Sem prejuízo de alguns momentos conseguidos, a "Crónica do Século" consegue a proeza de nos mostrar a História do nosso país como se estivéssemos a ver a paisagem da janela do comboio: vemos tudo e não fixamos senão manchas e um ou outro relevo.

 

 

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