Socialistas e Libertários
Por Pedro Magalhaes*
Political Compass não é o único sítio na Internet, nem sequer talvez o melhor, de entre os muitos onde o vulgar cidadão pode “ficar a saber” onde se situa ideologicamente. Mas é, de longe, o mais conhecido, usado desde há anos por um conjunto heterogéneo de cientistas sociais, políticos, jornalistas e, mais recentemente, bloggers. Para além de partilhar com produtos congéneres uma virtude anti-dogmática — a ideia de que as nossas convicções políticas são coisas que se descobrem, em vez de se saberem à partida — esta “Bússola Política” tem duas vantagens adicionais. A primeira é que não é um teste tão longo que esgote a paciência de quem responde nem tão breve que pareça inconsequente. A segunda, mais importante, resulta do facto de partir do princípio que o eixo esquerda/direita, definido na base de visões alternativas sobre como devem ser redistribuídos os recursos nas nossas sociedades (opondo, para simplificar, Socialismo e Capitalismo), não chega para traçar o mapa ideológico das democracias ocidentais. Mudanças nas experiências ocupacionais, educacionais e de estilos de vida dos cidadãos fizeram com que uma segunda dimensão dos conflitos ideológicos se tivesse tornado relevante: “libertarianismo” versus “autoritarismo”, definida na base de visões alternativas sobre o grau de autonomia dos indivíduos em relação à sociedade e ao Estado e o grau de respeito devido à autoridade e à tradição.
Esta intuição dos autores do Political Compass encontra-se expressa na sua forma mais acabada num livro do politólogo Herbert Kitschelt, The Transformation of European Social Democracy (Cambridge: 1994). Aliás, segundo Kitschelt, aquilo que distinguiu os partidos sociais-democratas bem sucedidos eleitoralmente durante os anos 80 e 90 foi a capacidade para diluírem as suas ligações ao movimento sindical e as suas posições mais tradicionais de esquerda (aproximando-se do “centro” no plano sócio-económico), ao mesmo tempo que adoptavam uma agenda “progressista” ou “libertária” no plano dos valores, dos direitos individuais e da relação com a autoridade. Não é garantido que os ensinamentos de Kitschelt se apliquem ao caso português, nem que esta estratégia ideal para o final do século XX tenha resistido ao terror e ao medo do início do século XXI. Mas por esta razão e mais algumas — entre as quais um possível cenário de entendimento pós-eleitoral entre o PS e o “libertário” Bloco de Esquerda — torna-se particularmente interessante saber como se posicionam os candidatos à liderança socialista ao longo destes dois eixos ideológicos distintos.
A principal conclusão que se pode retirar dos resultados é que não existem grandes diferenças entre os posicionamentos ideológicos de Manuel Alegre, João Soares e José Sócrates. Todos se situam claramente à esquerda do centro em qualquer uma das dimensões (económica ou dos valores), caindo assim no quadrante que se poderia designar como o da “esquerda libertária”, tal como sucede com os restantes socialistas inquiridos. Quer a clareza dos posicionamentos quer a semelhança entre eles têm várias explicações. As respostas foram dadas a título pessoal, o que apesar de tudo não compromete definitivamente os candidatos com a adopção de posições semelhantes enquanto líderes partidários. No entanto, ao que parece, os partidos funcionam, agregando correctamente os interesses sociais e acabando por reunir na sua liderança pessoas com convicções ideológicas semelhantes, o que se torna mais claro quando se responde tendo em mente não o eleitorado em geral, mas o eleitorado socialista.
Mas a razão mais importante para a semelhança dos resultados é, talvez, o próprio questionário. O seu objectivo é ter aplicabilidade “universal”, ou seja, fazer o mapa dos posicionamentos ideológicos em todas as sociedades, regimes e sistemas políticos. Logo, nas sociedades onde determinados conflitos já se encontram resolvidos e os temas que lhes estão associados permanecem objecto de largo consenso social, os posicionamentos dos indivíduos acabam por se comprimir em torno de balizas mais ou menos estreitas, independentemente dos partidos a que pertencem e do seu posicionamento relativo. Assim, por exemplo, não há nas democracias ocidentais grande margem de variação ao longo do eixo libertarianismo-autoritarismo no que diz respeito à defesa dos direitos políticos democráticos. Da mesma forma, na maior parte dos países europeus, o consenso em torno de alguma forma de Estado Providência (mais ou menos interventor, redistributivo, ou universalista) é ainda generalizado, quer entre a população quer entre as elites políticas, atirando para os extremos as posições neo-liberais que, em países como os Estados Unidos, se situam mais perto do mainstream. A pertença à União Europeia e os benefícios nela percebidos ajudou, apesar de tudo, a fortalecer consensos relativos em torno de algumas vantagens do comércio livre entre países. E de uma forma geral, países com sociedades mais homogéneas do ponto de vista cultural, onde o interesse pela política e o correspondente espaço de debate são reduzidos, ou onde a sociedade civil é débil e pouco pluralista, são também países onde a polarização ideológica tende a ser menor. Logo, não é por acaso que a maior parte dos bloggers portugueses que vão divulgando os resultados que obtêm no Political Compass, mesmo os que se definem “à direita”, apareçam, por vezes para seu enorme espanto, na “esquerda libertária”. “Esquerda” porque vivem em Portugal e na Europa, partilhando, talvez sem disso se darem conta, dos seus consensos. Libertária, porque são instruídos, jovens e, já agora, bloggers…
É certo que há diferenças entre os candidatos. Por exemplo, Sócrates e Alegre parecem algo mais reconciliados com a economia de mercado do que Soares, como revelam a relutância deste último em aceitar a noção de que a terra ou a água são bens de comércio. E o que faz com que Alegre ou Soares apareçam mais à esquerda do que Sócrates em ambas as dimensões ideológicas é o facto de, apesar de defenderem geralmente as mesmas posições, o fazerem com maior intensidade. Entre as mais de 60 respostas às questões incluídas no inquérito, Sócrates só adiciona o advérbio “fortemente” às suas concordâncias ou discordâncias em seis ocasiões, em matérias como os efeitos da globalização, o racismo, o aborto, a democracia ou a pena de morte. Soares e Alegre fazem-no, respectivamente, nada menos que 23 e 32 vezes. Diferenças no grau de moderação e pragmatismo políticos? Na força e intensidade das convicções? Na importância atribuída aos temas? Impossível de saber.
O que isto sugere é que talvez não devamos levar este jogo de salão virtual demasiado a sério. Ele diz-nos coisas muito interessantes sobre as posições pessoais dos candidatos em temas extremamente delicados, obrigando os candidatos a uma candura pouco habitual na política portuguesa. Mas a política não é isto. Os resultados não nos dizem nada sobre a importância que os candidatos atribuem a cada um dos temas, sobre a facilidade com que abdicarão de uma ou outra convicção quando forem forçados a fazer compromissos, ou mesmo sobre a maneira como conciliarão desejos e possibilidades. Assim, a principal escolha que os candidatos socialistas oferecem aos seus eleitores é não tanto entre diferentes ideários genéricos — seria estranho que assim fosse num mesmo partido — mas sim entre diferentes prioridades, agendas, estratégias e estilos políticos. Para essas escolhas, os militantes socialistas terão de recorrer a outras fontes de informação.
*Politólogo
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