“Retrato do Artista Quando Jovem”,
de James Joyce

James Joyce apresenta aqui Stephen Dedalus, um artista por vir na Irlanda do fim do século XIX. O escritor olha-se ao espelho e conta uma parte da sua história: "Era uma vez..."

"Retrato do Artista Quando Jovem" é a terceira obra de James Joyce (n. em Rathgar, perto de Dublin, em 1882). Publicado em 1916 - depois de "Chamber Music", de 1907, e "Gente de Dublin", de 1914 -, o livro é também o primeiro volante do tríptico a que pertencem ainda "Ulisses" e "Finnegans Wake", o primeiro tido como um dos maiores monumentos literários da modernidade ocidental, o outro como um dos seus mais obscuros e bizarros enigmas.

Apesar de pelo meio Joyce ter publicado ainda dois títulos, o conjunto destas três narrativas é normalmente assumido como o corpo essencial da sua obra. E se "Ulisses" é de todas elas a mais vastamente conhecida e geralmente identificada como a sua obra-prima, T.S. Eliot disse uma vez que pretender saber qual das obras de Joyce é a maior é tão impertinente como querer saber qual é a maior peça de Shakespeare.

Tudo o que está assinado por Joyce é, diz ele, "um conjunto", uma "viagem total". No que toca a "Retrato", "Ulisses" e "Finnegans Wake" isso é particularmente verdade, sendo lidas como etapas (in)dependentes de uma aventura que caminha cada vez mais longe e mais fundo por territórios inexplorados.

O guia dessa aventura será Stephan Dedalus, que Joyce apresenta, precisamente, em "Retrato" - para depois o levar a protagonizar também "Ulisses" e fazer aparecer ainda em "Finnegans Wake".

Com enorme confluência de coincidências biográficas com a vida do escritor, é como se com "Retrato", antes de embarcar numa grande aventura, Joyce tivesse decidido olhar para o espelho para estabelecer (num ficcionamento da sua própria história) uma espécie de cartografia afectiva, definindo, assim, ao mundo e a si mesmo, o lugar de onde ele e a sua obra partem.

No reflexo do espelho, para contar a história, surge, então, Stephen Dedalus, artista por vir na Irlanda do final do século XIX. E começamos com "era uma vez..."

"Era uma vez, nos doces tempos de outrora, uma vaca (múu!) que vinha pela estrada abaixo e encontrou um bebé-petenino". Que era Stephan Dedalus, que haveria de "fazer incursões em jardins de solteironas", "ter combates em cima de penhascos eriçados de urzes", abraçar uma educação católica em colégios jesuítas, como o próprio escritor, e, também como ele, na religião se confrontar com as suas primeiras questões éticas e estéticas.

Capítulo a capítulo, vamos acompanhando o crescimento intelectual de um jovem que, "com vontade de atirar alto o grito do falcão ou da águia", haverá de descobrir que a sua vocação é estar "rente ao coração selvagem da vida" e poder esperar "apertar nos braços a beleza que ainda não veio ao mundo".

Mas mais do que a narrativa relativamente distanciada feita na voz de uma terceira pessoa omnisciente, com "Retrato" o que Joyce oferece é uma obra que (literalmente) cresce com o seu protagonista. Que vê o que ele vê e como ele o vê. Que respira com ele. Partindo de um monólogo interior pueril e vagamente fragmentário, para a pouco e pouco ganhar um olhar analítico, que se vai agudizando e começando a abarcar o mundo nas suas cada vez mais distintas camadas de complexidade. Até estar pronto para encetar com elas um diálogo crítico.