Sherlock
Holmes entre os monges
Marisa
Torres da Silva
Uma simples ideia fez surgir
aquele que é considerado um dos maiores best-sellers
da literatura contemporânea. A Umberto Eco fascinava-o
"a imagem de um monge envenenado enquanto lia um livro
na biblioteca". E assim nasce, em 1980, o primeiro romance
do semiólogo italiano
Crónica medieval, intriga policial,
jogo literário. Qualquer tentativa de espartilhar "O
Nome da Rosa" numa categoria única afigura-se
inútil e frustrada. O primeiro romance de Umberto Eco,
professor de semiótica na Universidade de Bolonha,
contém em si mesmo todos os ingredientes de uma obra
inesperada.
Traduzido para mais de 60 línguas
e vencedor de dois dos principais prémios literários
italianos (Viareggio e Strega), "O Nome da Rosa",
um enorme sucesso de vendas a nível mundial, explora
as diversidades, contradições e complexidades
do mundo medieval, mas também levanta questões
relacionadas com a actualidade, em última análise,
sobre o que é constitui a cultura, a quem é
transmitida, por quem e com que objectivos.
Umberto Eco é, aliás, um
autor que, à semelhança de muitos outros na
história da literatura, desenvolve uma dupla via de
criação: por um lado, o discurso académico
(é um semiólogo internacionalmente reconhecido)
e, por outro, a narrativa de ficção. Neste autor,
os dois universos cruzam-se incessantemente, sobretudo no
que diz respeito à escrita de romances, que beneficiam
do próprio percurso de Eco.
O livro "O Nome da Rosa" constitui
um prodigioso relato histórico, que projecta o leitor
para a primeira metade do século XIV e para o universo
monástico. Entre as descrições do clero
da época, a evocação da vida quotidiana
de uma abadia beneditina, os perfis dos monges e das suas
ocupações diárias, passando pela cozinha
até às discussões teológicas,
a obra explora toda uma panóplia de peças e
de espelhos onde se esconde, no meio de milhares de volumes
e manuscritos, a síntese do saber humano. Ironicamente,
o enredo do livro parece querer dizer que tanto a sede de
conhecimento como a busca da verdade são perigosos,
ambíguos e ilusórios.
A biblioteca de uma grande abadia medieval
é o centro e o palco principal de toda a trama, construída
de forma labiríntica, de onde partem caminhos e pistas
ambivalentes. Nas palavras de Guilherme de Baskerville, um
dos protagonistas do romance e que corresponde a uma espécie
de Sherlock Holmes transposto para os tempos medievais, "a
biblioteca defende-se por si, insondável como a verdade
que acolhe, enganosa como a mentira que encerra. Labirinto
espiritual, é também labirinto terreno. Poderiéis
entrar e poderiéis não sair" (Primeiro
Dia, Terça).
Elementar, meu caro Adso
Toda esta complexidade inerente ao livro e as múltipas
questões que coloca aparecem, porém, disfarçadas
sob a forma de intriga policial. Está tudo lá:
homicídios, suspense, pistas, o detective e o seu ajudante,
as revelações a par e passo e o desenlace final.
Mas convém descrever minimamente
o enredo da obra. Decorria o ano de 1327, dominado pelas lutas
entre o Imperador e o Papa, e, dentro da esfera eclesiástica,
entre a igreja e as ideias reformistas franciscanas. Guilherme
de Baskerville, monge franciscano, e o seu jovem discípulo
Adso de Melk chegam a uma abadia situada no norte de Itália,
que possui a mais completa biblioteca da cristandade. Tanto
o abade como os monges controlam meticulosamente o acesso
à colecção.
Todo este ocultismo que a envolve deve-se
ao facto de aí existirem milhares de livros escritos
por autores pagãos, judeus e árabes, bem como
diversos registos de heresias. Com efeito, é particularmente
vedado o acesso a um livro, o segundo volume da Poética
de Aristóteles, que faz uma apologia do riso e das
suas virtudes.
Eco cria também, a par de Guilherme
e de Adso, uma personagem extraordinária, dotada de
um saber enciclopédico: Jorge de Burgos (numa evidente
alusão ao escritor argentino Jorge Luis Borges), adversário
à altura de Guilherme de Baskerville. Ambos se confrontam
em acaloradas discussões sobre a permissibilidade do
riso: enquanto Jorge de Burgos o define como "fonte de
dúvida" e "coisa bastante próxima
da corrupção e da morte", Guilherme encara-o
como algo que "é próprio do homem, sinal
da sua racionalidade".
Da época medieval ao século
XVII
No ano de 1980, Umberto Eco dava início a uma triunfal
carreira literária que o transformou num dos romancistas
europeus mais lidos da década. O desencanto suscitado
pelo seu segundo romance, "O Pêndulo de Foucault"
(1988), não lhe afectou o crédito, pelo menos
comercial.
Em "O Nome da Rosa", Eco aplicou
os moldes da novela policial ao romance histórico,
utilizando como temática o mundo medieval. Com "O
Pêndulo de Foucault", abandona a Idade Média,
mas não a matéria medieval, retomando-a com
a história da dissolução dos templários,
para criticar os esoterismos, outra face da transcendência
religiosa. "A Ilha do Dia Antes" (1994) situa-se
no século XVII, na época da Guerra dos Trinta
Anos; o enredo, tal como "O Nome da Rosa" possui
um indisfarçável tom lúdico. No ano passado,
Eco regressou à época medieval com o romance
"Baudolino", mas desta vez explora o ambiente laico,
numa história recheada de humor e de mentiras.
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