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                    PÚBLICO de 2 de Novembro de 1991
 O novo romance de José Saramago, 
                    "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", é posto 
                    à venda no dia 7
 "Deus quis este livro"
 Por Torcato 
                    Sepúlveda
  
                    Que o leitor não espere de "O 
                      Evangelho Segundo Jesus Cristo" - o mais recente romance 
                      de José Saramago, a ser lançado no próximo 
                      dia 7 - excesso e imprecação. "O Evangelho" 
                      é um livro herético, mas contido, austero, 
                      como o tema exige. "É herético apenas 
                      porque propõe uma escolha diferente da habitual", 
                      diz o escritor. Um homem sereno, que não teme as 
                      reacções da Igreja Católica: "A 
                      Igreja já se habituou a ser discreta".Saramago tem consciência de que este livro, se tivesse 
                      sido escrito até ao terceiro quartel do século 
                      XVIII, levaria o autor à fogueira. Porquê? 
                      Porque lá estão todas as inquietações 
                      que sempre afligiram o homem: Quem sou eu? Quem é 
                      Deus? Porque tenho de morrer? O que é o bem e o mal? 
                      É evidente que num evangelho assim não se 
                      encontram ideias feitas. Tudo ali é interrogação. 
                      E o próprio Jesus nos surge como um homem normal 
                      que não espera licença de Deus para pensar. 
                      Porque, como diz a um discípulo, se Ele nos deu pernas 
                      e nós não esperamos ordem para andar, também 
                      não devemos esperar ordem para pensar.
 Este livro são vários livros, o que não 
                      é de espantar no autor de "O Ano da Morte de 
                      Ricardo Reis". É o livro das heterodoxias (por 
                      ele passam o maniqueísmo, o quietismo, os Irmãos 
                      do Livre Espírito); um livro mariano (não 
                      tanto porque valorize a personalidade da mãe de Jesus, 
                      mas porque enaltece a figura de Maria Madalena, ou Maria 
                      de Magdala, que com ele dorme e dele faz um adulto); um 
                      livro freudiano, de iniciação à vida 
                      e seus dramas (Jesus corta com a família de forma 
                      violenta). Um livro maldito (a educação de 
                      Jesus é entregue ao Diabo pelo próprio Deus).
 "O Evangelho" passará a ser o livro dos 
                      livros de Saramago. Nele se concentram todas as obsessões 
                      do autor, a principal das quais é a do livre arbítrio 
                      do homem perante as forças que o oprimem. Por isso 
                      o romance incomoda ainda de forma suplementar: o Deus de 
                      Israel é um político desabusado e um tanto 
                      cínico que pretende aumentar o seu poder e que para 
                      esse fim utiliza os homens, todos os homens, incluindo o 
                      próprio filho. Que lhe resiste. Porque este filho 
                      tem a pouca sorte de ter dois pais, deles herdando as culpas. 
                      De José herda o remorso de um "crime por omissão": 
                      José salvou o filho da matança dos inocentes, 
                      mas não avisou as outras famílias que corriam 
                      o mesmo risco. De Deus, o pai celeste, herda a impotência 
                      essencial: não conseguir evitar a morte às 
                      suas criaturas. Assim, Jesus não ressuscita Lázaro, 
                      porque Maria de Magdala o avisa de que não há 
                      homem algum que tenha a pesar-lhe na consciência pecados 
                      tais que mereça morrer duas vezes. Jesus afasta-se 
                      para chorar...
 Jesus não teve só dois pais; teve também 
                      duas mães. Maria, sua mãe biológica, 
                      e Maria de Magdala que tudo lhe ensinou: "Aprende o 
                      meu corpo"; "Aprende o teu corpo", sussurrou-lhe 
                      ela na primeira noite de amor, a primeira de uma longa série. 
                      É esta humanização de Jesus que eleva 
                      o livro e eleva o próprio Jesus. Que num último 
                      movimento de revolta tenta escapar aos ditames políticos 
                      do Deus-Pai e se faz condenar como Rei dos Judeus, como 
                      Filho do Homem, e não como Filho de Deus. Assim, 
                      seria poupada à humanidade uma série de catástrofes 
                      que a nova religião iria causar. Por isso, mais doloroso 
                      do que o grito de Jesus na cruz, "Homens, perdoai-lhe, 
                      porque ele não sabe o que fez", é essa 
                      outra pergunta que Jesus-menino faz no "segredo do 
                      seu coração": "Quando chegará, 
                      Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres 
                      os teus erros perante os homens."
 Tem consciência de que este 
                    livro se fosse escrito até meados do século 
                    XVIII, autor e livro seriam queimados?Bom, seriam com certeza. O livro não se queixaria muito, 
                    mas o autor que teria de passar um mau bocado.
 Este livro é um livro de adolescência 
                    e de crescimento. É como se a história de Jesus 
                    fosse a história de um homem normal, a história 
                    de uma criança, de um adolescente que enfrenta o mundo, 
                    o poder, a família.Deve ser visto assim. Pode-se estranhar, tendo em conta o 
                    modo como está organizada a vida de Jesus nos Evangelhos, 
                    que eu tenha dado tanta importância justamente à 
                    infância e à adolescência...
 Que são as fases menos conhecidas 
                    da vida de Jesus...São as fases praticamente 
                    desconhecidas. Mas não podemos andar sempre a dizer, 
                    sem tirar daí todas as consequências, que o mais 
                    importante na vida de um ser humano é a infância 
                    e a adolescência. É justamente esse Jesus que 
                    me interessa mais, não só por uma razão 
                    puramente economicista de preencher o espaço que nos 
                    Evangelhos é deixado praticamente vazio, mas também 
                    para tratar desde o princípio a relação 
                    que Jesus estabelece com Deus. Não tanto saber se Jesus 
                    é filho de Deus, ou como é que é filho 
                    ou até que ponto é filho. O que me interessa, 
                    e isso começa a ser definido desde logo, desde a infância 
                    e pela a adolescência dentro, é a relação 
                    que ele tem com Deus. Comparativamente, o fim da vida de Jesus 
                    ocupa, no meu livro, um espaço bastante reduzido. A 
                    parte substancial é a infância e a adolescência, 
                    embora no que se refere a conclusões a tirar, se algumas 
                    se tiram, é nas páginas finais que as encontramos. 
                    Tudo se ata então num nó a que apetece chamar 
                    górdio, porque não tem solução.
 Precisamente. Encontro, no seu Evangelho, 
                    sinais óbvios de algumas heterodoxias: o maniqueísmo, 
                    o quietismo, e para mim a mais fascinante de todas: uma espécie 
                    de revolta contra o pai, contra Deus, revolta contra o poder, 
                    a que se chamou, na Idade Média, os Irmãos do 
                    Livre Espírito. Mas o quietismo do seu livro decorre 
                    desse nó górdio. Isto é, Cristo rebelou-se 
                    contra a família e contra Deus. Depois tenta solucionar 
                    o problema pela astúcia. Mas quando chega ao fim, percebe 
                    que foi um joguete, um títere de Deus. Deus é 
                    o poder? Parece que estamos sempre dentro dele, que não 
                    conseguimos livrar-nos dele. Não se pode concluir que 
                    mais vale ficar parado?O poder está aí e nós não podemos 
                    libertarmo-nos dele. O que podemos e devemos é rebelar-nos 
                    constantemente contra ele. E aqui estabeleço uma relação 
                    entre dois livros que afinal de contas parece que não 
                    têm nada que ver um com o outro, mas que são 
                    sucessivos no tempo: a "História do Cerco de Lisboa" 
                    e "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". O que o revisor 
                    escreve no primeiro é o "não" que 
                    se opõe à chamada verdade histórica oficial. 
                    Ele diz "não", e a partir daí tem 
                    que inventar outra coisa. É certo que o "não" 
                    inevitavelmente acaba por converter-se em "sim". 
                    Converte-se porque parece que não se pode fugir a isso, 
                    mas tem de acontecer outro "não" e sucessivos 
                    "nãos" que se transformam em "sim". 
                    É uma cadeia que não sei se parará alguma 
                    vez.
 Mas este livro é mais radical 
                    nisso, porque Jesus, quando tenta a última astúcia 
                    contra Deus, percebe antes de morrer que falhou. Há 
                    um sentimento de derrota.Uma derrota total. Jesus é 
                    vencido, tem a consciência de que foi vencido e o livro 
                    parece que fecha dessa maneira. É realmente um nó 
                    górdio que não pode ser desatado porque sempre 
                    o poder se imporá. Neste caso é Deus, mas podia 
                    ser o poder civil ou militar. É um poder que tem a 
                    força, que determina, que condiciona e que empurra 
                    cada um de nós e todos juntos para um determinado fim 
                    que é servi-lo. É o que acontece a Jesus. Jesus 
                    está ali para servir o poder de Deus e para ser o instrumento, 
                    digamos a vítima sacrificial, do alargamento do poder 
                    de Deus a outras gentes e a outras terras. No fundo, trata-se, 
                    no caso de Deus, de alargar o seu espaço vital, a sua 
                    área de influência. Mas há um personagem 
                    de que ainda não falamos mas que tem que ser mencionado: 
                    o Diabo.
 Aí entra o maniqueísmo: 
                    se o bem alastra, o mal também. E não se sabe 
                    o que é o mal e o que é o bem.Suponho - suponho apenas - que a maneira de desatar este nó 
                    górdio é a a interrogação sistemática, 
                    por uma espécie de imposição interior, 
                    interrogar sempre mas interrogar no sentido da contestação. 
                    Interrogar primeiro no sentido da necessidade da compreensão 
                    - pois só se chega à compreensão pela 
                    interrogação - mas também no da contestação. 
                    Atitude constante ao longo do livro, venha de onde vier: de 
                    Jesus, do Diabo. Jesus, quando tem 13 anos, vai ao templo 
                    para saber o que é a culpa, e lá se encontram 
                    mais dois judeus a interrogar o escriba sobre questões 
                    que no fundo são afins. Chegaríamos então 
                    à terceira heresia, que é o uso da nossa razão. 
                    Jesus usa a razão para obrigar Deus a revelar o futuro 
                    da religião que vai ser fundada sobre o sacrifício 
                    dele. Mas não pode ir mais longe e quando nessa pequena 
                    astúcia final, quase infantil, em que julga poder escapar 
                    por esse artifício, esse subterfúgio, esse...
 Afirmar-se apenas como homem e dizer 
                    "eu sou o Rei dos Judeus", e não "sou 
                    o filho de Deus".Mesmo isso falha porque já estava previsto. Então 
                    a única solução para nos soltarmos do 
                    nó górdio é não pensar que a razão 
                    em cada momento nos dá a resposta definitiva. Não 
                    há nada definitivo, é constantemente perguntar, 
                    constantemente contestar. É a margem de liberdade que 
                    nos resta como seres humanos na relação com 
                    o poder, neste caso o poder de Deus, e com todo o poder.
 Essa atitude tem alguma coisa a ver 
                    com a sua experiência pessoal em relação 
                    ao falhanço do comunismo?No que se refere à minha própria vivência 
                    política e ideológica, se há alguma coisa 
                    de que me recrimino hoje é talvez - ainda me dou o 
                    beneficio da dúvida - ter interrogado menos do que 
                    devia, ter contestado menos do que devia e ter exigido menos 
                    do que devia. Se não fosse essa circunstância 
                    - que não afecta nem retira nada do que é essencial 
                    na relação que mantenho com essa vivência, 
                    com essa ideologia - talvez eu não tivesse sido capaz 
                    de ir tão longe. Suponho que fui longe. Mas esta minha 
                    costela interrogativa e exigente é coisa antiga que 
                    se tornou muito mais clara e definida neste livro. Concordo 
                    consigo nesse paralelo, nessa coincidência, nesse cruzamento 
                    possível. Tem razão.
 Este livro são muitos livros. 
                    Tudo são muitas coisas.
 Este "Evangelho" é 
                    também um livro mariano, não no sentido da recuperação 
                    da figura de Maria, que é uma mãe provável 
                    e plausível, com as dúvidas todas que uma mãe 
                    tem quando um adolescente chega a casa com novidades, e Jesus 
                    trazia muitas novidades para casa. Mas é um livro mariano 
                    pela grande força que a mulher traz para a experiência 
                    de Jesus. Um rapaz com dois pais e, como se já não 
                    lhe chegasse essa desgraça, também tem duas 
                    mães: Maria e a segunda Maria, Maria Madalena, ou de 
                    Magdala, a amante que a certa altura o trata por filho.Devo confessar-lhe que estava para mim muito claro que Jesus 
                    teve dois pais . Mas ter duas mães é qualquer 
                    coisa que se me apresentou agora com uma nitidez completa 
                    depois de você me ter chamado a atenção 
                    para isso. Porque de uma certa maneira Jesus tem efectivamente 
                    duas mães. Teve que nascer duas vezes.
 E a mãe natural percebe isso 
                    muito claramente.Ela percebe isso claramente quando 
                    tem o encontro com Maria de Magdala nas bodas de Canaã. 
                    Reconhece então que o seu tempo chegou ao fim e entrega 
                    Jesus a essa outra mulher que é ao mesmo tempo amante, 
                    mulher no sentido de companheira se se quiser, e mãe. 
                    A certa altura, talvez sem eu saber muito bem porquê, 
                    levei Maria de Magdala a chamar-lhe filho.
 Ela chama-lhe filho e ele não 
                    precisa de lhe chamar mãe, é uma coisa tácita 
                    entre eles.A aprendizagem que Jesus faz com o pastor de um grande rebanho, 
                    que é o Diabo - um grande rebanho, em que os animais 
                    as ovelhas, os carneiros, as cabras e os bodes apenas morrem 
                    de morte natural, é um rebanho que vai crescendo constantemente. 
                    E não se diga que é o rebanho do mal, seria 
                    demasiado fácil. É o rebanho da vida, de uma 
                    certa forma de vida livre sem sujeições nem 
                    teias que o Diabo se limita a conduzir sem interferir. É 
                    o coordenador, é o que mantém aquele rebanho 
                    reunido -, essa aprendizagem mostra-se inacabada. O próprio 
                    Diabo lhe diz "não aprendeste nada, tens que voltar 
                    ao princípio". É que Jesus recusara sacrificar 
                    um cordeiro a Deus, mas não resistira a sacrifica-lo 
                    noutra altura, quando o cordeiro já era uma ovelha
 Ora a aprendizagem é recomeçada 
                    com a mulher.A mulher. A primeira mulher que ele encontra, uma prostituta, 
                    uma marginal - e que no momento em que o encontra deixa de 
                    ser a prostituta - é necessária a Jesus.
 Há outra vertente: a das relações 
                    que Jesus estabeleceu com a família, com o próprio 
                    pai. O pecado que o pai terreno cometeu - José não 
                    avisou as outras famílias da matança das crianças 
                    por Herodes - não o largou até muito tarde.Eu não lhe chamaria pecado. Iria mais longe. Chamar-lhe-ia 
                    crime por omissão.
 A relação que ele estabelece 
                    com a família terrena é complicada, freudiana. 
                    Tanto com o pai do céu, como com o pai da terra, e 
                    com a mãe.Não é nada que eu tenha inventado para tornar 
                    mais conflitivo o conflito. É qualquer coisa que decorre 
                    muito simplesmente da leitura dos próprios Evangelhos. 
                    A má relação de Jesus com os seus é 
                    clara, está lá, é explicita. Nenhuma 
                    razão é dada para isso. Pelo menos nos Evangelhos 
                    não há nenhum indicio, mínimo que seja, 
                    que nos leve a compreender porque é que ele não 
                    quer aquela família. Porque dizer que minha mãe, 
                    meu pai e meus irmãos são aqueles que me seguem, 
                    é a rejeição formal, explícita 
                    e pública de qualquer relação familiar.
 Há alturas em que o Deus de 
                    Israel, que é o Deus da guerra, um Deus terrível 
                    e violento, se humaniza. Humaniza-se no sentido em que é 
                    um político.Isso tem uma espécie de eco final quando Pilatos é 
                    posto perante a necessidade de julgar o Filho do Homem e o 
                    sacerdote lhe diz: "Para nós Filho do Homem e 
                    Deus é a mesma coisa". Ele diz, bem, isso a mim, 
                    não me interessa. Se se tratasse dos meus deuses com 
                    quem isso acontece constantemente, enfim, podia-me interessar, 
                    neste caso não interessa nada. Este Deus de facto é 
                    uma segunda vida de Deus, se se pode falar assim, ou deixa 
                    de ser o Deus.....
 Esse Deus dos Exércitos, esse Deus, digamos, das guerras, 
                    esse Deus que de uma certa maneira, como os deuses gregos, 
                    combatia ao lado do seu povo escolhido, eleito - como Minerva, 
                    estou a lembrar-me do cerco de Tróia em que os deuses 
                    combatiam ao lado do Heitor, do Aquiles, do Ajax -, este Deus, 
                    Jeová, vai deixar de ser isso porque entendeu, como 
                    político astuto que é, que se a guerra é 
                    a política conduzida por outros meios, a pode conduzir 
                    sem ela. Ele entende que o caminho é outro e que ele 
                    vai servir-se de um outro meio para deixar de ser o pequeno 
                    deus que é, de uma pequena região e de um povo 
                    pequeno, para ser, se possível, católico, se 
                    possível universal. E para isso aceita todos os arranjos 
                    e conciliações. A verdade é que há 
                    um acordo profundo - embora também seja duvidoso que 
                    esta seja a palavra justa - entre Deus e o Diabo. Não 
                    podemos esquecer que a educação prática 
                    de Jesus é feita pelo Diabo. E Deus sabe-o. E o que 
                    é mais singular - encontramos isso nos Evangelhos - 
                    é que a primeira entidade que declara publicamente 
                    Jesus filho de Deus é num encontro com o possesso Gadareno, 
                    aquele que tinha dentro de si tantos demónios que se 
                    chamava Legião. São esses demónios que 
                    o saúdam, melhor, que lhe pedem: "Não nos 
                    tortures filho do Altíssimo". Até aí 
                    ninguém tinha falado em Jesus como filho de Deus.
 Há quase três deuses 
                    aqui: Deus, Cristo e um terceiro Deus. Você já 
                    disse que não encontrava narrador nas suas obras, mas 
                    há aqui um terceiro Deus, que é o narrador ou 
                    o autor. De vez em quando interrompe a narração, 
                    aliás numa técnica muito camiliana...Sim, sim...
 ...com uma grande ironia, desmontando 
                    a seriedade de alguns discursos, tanto das personagens como 
                    dele próprio, narrador. Há ali omnipotência, 
                    do autor ou do narrador, nessa interferência na acção. 
                    Estamos a falar do poder da palavra, do verbo, num tema bíblico...A velhíssima questão do narrador omnisciente. 
                    Quando se fala dos meus livros, sempre se refere: "o 
                    seu narrador". Do ponto de vista técnico aceito 
                    que me separem a mim, autor, dessa entidade que está 
                    por lá que é o narrador. Também não 
                    vale a pena dizer que o narrador é uma espécie 
                    de "alter ego" meu. Eu iria talvez mais longe, e 
                    provavelmente com indignação de todos teóricos 
                    da literatura, afirmaria: "Narrador, não sei quem 
                    é". Parece-me, e sou leigo na matéria, 
                    que no meu caso particular - e creio ter encontrado uma fórmula 
                    que acho feliz para expressar isso - é como se eu estivesse 
                    a dizer ao leitor: "Vai aí o livro, mas esse livro 
                    leva uma pessoa dentro". Leva uma história, leva 
                    a história que se conta, leva a história das 
                    personagens, leva a tese, a filosofia, enfim, tudo o que se 
                    quiser encontrar lá. Mas além de tudo isso leva 
                    uma pessoa dentro, que é o autor. Não é 
                    o narrador. Eu não sei quem é o narrador, ou 
                    só o sei se o identificar com a pessoa que eu sou.
 O meu narrador não é o narrador realista, que 
                    está lá para contar o que aconteceu, sendo guiado 
                    pelo autor que por sua vez se mantém distante. Pelo 
                    contrário. Aquilo que procuro - embora sem saber muito 
                    bem que o faço, se calhar vou compreendendo que andava 
                    à procura depois de ter chegado - é uma fusão 
                    do autor, do narrador, da história que é contada, 
                    das personagens, do tempo em que eu vivo, do tempo em que 
                    se passam todas essas coisas, um discurso globalizante em 
                    que cada um destes elementos tem uma parte igual. Porque de 
                    certa maneira, Jesus não é mais importante neste 
                    livro do que outras personagens...
 Chega a afirmar no "Evangelho" 
                    que está a contar a história de Jesus, mas podia 
                    estar a contar a história de qualquer rapaz da Galileia".Podia chamar-se Jesus, podia até ser filho de outro 
                    José e de outra Maria. Uma ideia minha, que expresso 
                    de maneira nada científica, que o tempo não 
                    é sucessão diacrónica, em que um acontecimento 
                    vem atrás de outro; o que acontece projecta-se numa 
                    imensa tela e tudo fica ao lado de tudo. Como se o homem de 
                    Cromagnon estivesse colocado nessa tela ao lado do "David" 
                    de Miguel Ângelo. Para o autor não há 
                    passado nem futuro. O que vai ser já está a 
                    acontecer. Para este autor, ao escrever estes livros, as coisas 
                    passam-se assim.
 Eça de Queiroz tentou uma Vida 
                    de Cristo, nas "Prosas Bárbaras".A própria "Relíquia" é a Paixão 
                    de Cristo
 Mas Eça é positivista, 
                    baseia-se em Renan. O seu "Evangelho" não 
                    participa do positivismo.Tenho uma visão não positivista do Cristianismo. 
                    Sou capaz de me atrever a uma firmação ousada, 
                    há muita gente que não vai gostar dela: não 
                    seríamos muito diferentes daquilo que somos se continuássemos 
                    com a velha religião dos romanos, se andassem ainda 
                    por aí Minerva, Júpiter, Vénus. O Cristianismo, 
                    para além daquilo que trouxe - e trouxe coisas belíssimas, 
                    tenho ali a "Paixão Segundo S. Mateus", de 
                    J. S. Bach - deu lugar a uma arte que atingiu as mais excelsas 
                    alturas, na pintura, na música, na poesia, na arquitectura, 
                    na escultura. Produziu tipos humanos admiráveis, um 
                    S. Francisco de Assis. Mas há o outro lado da balança: 
                    o sangue, o sofrimento, a angústia, a renúncia, 
                    o pecado. É uma religião de onde a alegria está 
                    ausente, ou então há um certo tipo de alegria 
                    que não passa pelo humano, pelo corpo.
 O seu Jesus conheceu essa alegria 
                    do corpo. É por isso que ele se revolta contra Deus.Ele teve o conhecimento do seu próprio corpo, lembre-se 
                    do encontro dele com Maria de Magdala. Há duas frases 
                    dela absolutamente necessárias: "Aprende o teu 
                    corpo"; e depois, "Aprende o meu corpo". O 
                    cristianismo recusa o corpo, recusa o invólucro necessário.
 Vivemos num país profundamente 
                    católico - ainda o é...... tenho algumas dúvidas, tenho algumas dúvidas 
                    sobre o catolicismo da nossa gente...
 ... não o catolicismo no sentido 
                    absoluto do termo, da Reforma. Mas Portugal é um país 
                    mais católico do que outros. Deus existe em mais cabeças 
                    do que em França, por exemplo. Que reacção 
                    é que acha que este livro vai ter nessas cabeças? 
                    Alguns dos grandes escritores portugueses (alguns deles tentaram 
                    reformar o país, é o caso do Eça de Queiroz, 
                    nas "Prosas Bárbaras" e depois na "Relíquia") 
                    que ensaiaram este tema...... e até o Fernando Pessoa, peguemos no "Guardador 
                    de Rebanhos".
 Precisamente. O José Saramago 
                    entra numa tradição de criadores que estabelecem 
                    algumas distâncias em relação à 
                    religião (no caso do Pessoa é uma distanciação 
                    individual e pessoal mas existia; no caso do Eça era 
                    filosófica; no de Herculano foi duro porque a igreja 
                    tocou a rebate...), mas não se alheiam da temática 
                    crística. Que reacções pensa que vão 
                    ser as da Igreja?A Igreja aprendeu a ser discreta nas suas expressões 
                    de desagrado. Já sabemos que não queima ninguém, 
                    evidentemente. Sou baptizado, é verdade, mas também 
                    foi o único sacramento que me caiu em cima. Tecnicamente 
                    posso ser excomungado é um facto, mas apenas tecnicamente. 
                    Não penso que a Igreja caia no ridículo de me 
                    excomungar, nem espero uma nota do Conselho Episcopal ou do 
                    Patriarcado. E quando digo que não espero, quero dizer 
                    que desejo que não aconteça para que as coisas 
                    não caiam naquilo que pelo menos a mim me pareceria 
                    ridículo. A Igreja não cairá com este 
                    "Evangelho", este "Evangelho" é 
                    um romance, nada mais. Um romance que se atreve muito, um 
                    livro honesto, um livro limpo, que vai com certeza confundir 
                    muita gente, que vai indignar também não pouca 
                    gente, há pessoas que vão sentir-se chocadas 
                    porque fui longe de mais ou que nem sequer me devia ter atrevido. 
                    De Cristo, de Deus e de Maria não se pode fazer nada 
                    que não seja pura edificação - não 
                    é nesse plano que eu me coloco, é evidente, 
                    é noutro. É possível que a Igreja mande 
                    alguns dos seus emissários escrever artigos contra 
                    mim, desqualificando o livro, desqualificando-me a mim, por 
                    exemplo, com ser moral, coisas deste género, pode acontecer 
                    tudo isso. Mas a minha posição, se isso acontecer, 
                    será de perfeita serenidade.
 Se alguma coisa eu gostaria que acontecesse era que crentes 
                    e não crentes que lerem este livro dele tirem apenas 
                    esta ideia: é preciso pensar nestas coisas a sério. 
                    Quer do ponto de vista do crente, quer do ponto de vista do 
                    não crente. Pensar nelas a sério, interrogá-las. 
                    Porque não há nada de definitivo neste mundo. 
                    Este planeta onde vivemos é coisa nenhuma. As próprias 
                    religiões têm pouca importância. Têm 
                    importância para nós porque se traduzem em normas 
                    de vida, em ideologia, em cultura. Mas não mais, porque 
                    nós próprios também não temos 
                    muita.
 Se a religião é aquilo 
                    que liga, não será você um espírito 
                    religioso?Sou um espírito profundamente religioso. E digo-lhe, 
                    usando um pouco da minha ironia habitual, que é preciso 
                    ter-se um altíssimo grau de religiosidade para fazer 
                    uma ateu como eu. No sentido etimológico de religião, 
                    tomada como aquilo que liga, o que sinto é essa grande 
                    ligação a tudo, àquilo que está 
                    aqui à mão, que somos nós, ao que nos 
                    rodeia, esta terra pequena que é a nossa terra, a outra 
                    maior, o continente, o globo.
 A coisas simples, também, à 
                    pedra...... sim, sim, sim, as pedras aparecem constantemente nos meus 
                    livros. Se há qualquer coisa que me irrita profundamente 
                    em relação a ter de morrer um dia, é 
                    que vou daqui sem perceber nada disto. E quando digo sem perceber 
                    nada disto... Enfim, perceber isto aqui onde estamos já 
                    é difícil mas - eu sei que vou dizer uma banalidade 
                    terrível - sem perceber o universo. Irrita-me no plano 
                    intelectual ter falhado o momento da explicação 
                    do universo, irrita-me! Ousei este livro e não tenho 
                    nenhum conflito com Deus, não o escrevi para resolver 
                    qualquer crise minha. Resolvi fazê-lo...
 Acha que podia acontecer o contrário 
                    agora, quer dizer, o conflito aparecer depois da escrita do 
                    livro?Não creio. Mas há duas palavras que não 
                    se podem usar: uma é sempre outra é nunca. Não 
                    sei o que me acontecerá. Sei que aconteceu a outros, 
                    súbitas revelações, sou humano, estou 
                    sujeito também a uma coisa dessas. Uma revelação 
                    - pondo entre aspas - já eu tive. Este livro nasceu 
                    de uma ilusão de óptica, ocorrida em Sevilha, 
                    em Maio de 1947, quando eu, atravessando uma rua em direcção 
                    a um quiosque de jornais que se encontrava do outro lado, 
                    e graças aos meus péssimos olhos - porque seu 
                    tivesse uma visão perfeita teria visto só aquilo 
                    que lá estava - li nitidamente: "O Evangelho Segundo 
                    Jesus Cristo". Segui, não ligando muito. Parei 
                    um pouco adiante e disse para mim: "Não posso 
                    ter lido aquilo que li". Voltei atrás para certificar-me 
                    efectivamente de que efectivamente não estava lá 
                    nada: nem Evangelho, nem Jesus, nem Cristo e muito menos em 
                    Português. Depois estas coisas crescem, crescem dentro 
                    de nós, convertem-se em livros, de 450 páginas, 
                    como este.
 Em tempos menos positivistas, que 
                    seriam os que o José Saramago descreve no "Evangelho", 
                    teria sido um milagre.Não tanto um milagre, mas uma revelação. 
                    Indo um pouco mais longe - e parece-me uma boa conclusão 
                    para esta entrevista -, se assim foi então Deus quis 
                    este livro.
  
                      
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