Um dia longínquo de l984, José
Saramago recebe em casa uma carta que o deixa perplexo:
a editora italiana Suvini Zerboni escreve-lhe para o informar
que o compositor Azio Corghi está interessado em
fazer uma ópera a partir do "Memorial do Convento".
O escritor relê a carta, continua a achá-la
"insólita", não responde. E passa
o caso à Sociedade Portuguesa de Autores, para que
aprofundasse aquela sugestão singular.
"A verdade é que eu fiquei um pouco céptico...
Transformar um romance português numa ópera
italiana?", recorda ele, sorrindo.
A editora reincide, o compositor não desarma. Quase
um ano depois, José Saramago tem em Roma o seu primeiro
encontro com Azio Corghi, de quem entretanto ouvira já
alguns discos e "muito boas referências"
artísticas e profissionais.
"O 'Gargantua' de Rabelais fora, por exemplo, um excelente
trabalho do Azio... Mas porventura o que contou mais foi
o facto de eu ter gostado dele", diz José Saramago.
"É um homem de grande lhaneza, muito simples
e dono de uma grande competência técnica. Mas
é alguém de tal forma simples e discreto que
enquanto não se ouve a sua música temos que
adivinhá-la... Descobri um compositor apaixonado
pelo 'Memorial do Convento', pela história, pelos
valores do livro. Meses depois, voltámos a encontrar-nos
em Milão, e estas duas conversas deixaram as coisas
claras... Foi um encontro feliz."
E assim nasceu "Blimunda"... Numa noite de Maio
de 1990 e num berço de ouro, o Scala de Milão.
Um ano depois, "Blimunda" tem para si outro palco
de ouro, o do São Carlos, enquanto aguarda o de Turim
e ainda outras chamadas de prestígio, que a irão
levar, se tudo se concretizar, a Toronto, Los Angeles, São
Francisco, ao Met de Nova Iorque. E palcos primeiros da
Europa manifestaram já a intenção de
produzir novas encenações deste libreto.
Hoje, José Saramago ainda se confessa um autor quase
involuntário desta ópera. Encontro-o, camisola
verde-escuro, camisa às riscas verde e branco, na
casa onde mora, um pequeno andar debruçado sobre
uma rua "de silêncio e de paz", que mais
parece uma aldeia em plena Lapa. Bebemos um café
que vem "ali de baixo", conversamos, o telefone
nunca parará de tocar.
"O libreto da 'Blimunda' vem com dois nomes, o meu
e o do Azio Corghi, mas o trabalho essencial é dele...
A minha contribuição foi mais uma troca de
impressões, uma discussão de proposta de soluções,
um trabalho de acompanhamento, muito mais do que um fazer
real. Mas ele insistiu com grande delicadeza em que o libreto
contivesse os nossos dois nomes..."
Daqui a quatro dias, sentado na plateia do Teatro de São
Carlos, José Saramago terá provavelmente dificuldade
em dizer o sentimento com que viveu essa noite. E lembrar-se-á,
com certeza, dessa outra noite de Maio, quando, há
um ano, sentado no Scala, viu pela primeira vez surgir a
"sua" Blimunda. Já uma Blimunda outra,
que não lhe pertencendo continuava a ser sua.
Por dentro do escritor vive um homem pudico que não
se molda a explicitar sentimentos ou a publicitar emoções.
As suas mãos desenham incessantemente gestos e círculos
no ar e, de vez em quando, a sua ligeira gaguez tornar-se-á
mais lenta. E será sempre num registo contido que
hoje olhará para trás e se recordará
dessa outra noite fria de Primavera, em Itália.
"É difícil... Foi sobretudo emocionante.
É que nunca posso separar-me daquela ideia de que
sou um português de Portugal. Há uma ligação
profundíssima, uma raiz e tudo o que tem a ver com
ela. Lembro-me de mim e da minha emoção ali
sentado, diante daqueles actores, dos cenários, a
ouvir uma história que eu escrevera... Tive por vezes
a garganta apertada. Era como se eu, sabendo que parte daquilo
era meu, não tivesse ao mesmo tempo a certeza de
o merecer. Senti-me orgulhoso mas também muito humilde.
E houve um sentimento de responsabilidade. Sabe... (sorri),
não é um sentimento fácil... ou simples.
Será talvez ingénua esta ideia de se ser responsável
pelo país a que se pertence... Enfim, não
tenho que dizer senão isto."
No S. Carlos, entretanto, vive-se também a azáfama
- e que azáfama! - dos grandes momentos, e a contagem
do tempo, tal como ali perto, no Teatro Nacional, inverteu
já o seu ritmo: a partir de agora a contagem do tempo
é descrescente. Há rostos ansiosos, uma atmosfera
de tensão, no ar cruzam-se várias línguas
numa algaraviada indescritível, o chão está
juncado de mil fios, uma sofisticadíssima aparelhagem
de mistura de som ocupa uma parte da plateia, fazem-se ensaios
de luzes. A confusão tem aquela marca inconfundível
da véspera das estreias.
"Houve aqui dois cavaleiros que muito se bateram pela
'Blimunda'. O José Ribeiro da Fonte e o Manuel José
Vaz, directores deste teatro. Gosto de dizer e de reconhecer
isso", afirma José Saramago, na penumbra da
plateia.
No palco, vão lentamente nascendo os cenários
de Michel Le Bois, a sala é envolvida pelas vozes
de Blimunda e Baltasar - Kathia Lytting e William Lewis
-, os figurinos de Jacques Schmidt cruzam a cena. A orquestra
vai tomando o seu lugar e os cantores Fernando Serafim,
Marina Ferreira e Jorge Brás de Carvalho também
já se encontram prontos para um dos últimos
ensaios. Pelos bastidores, na plateia, em cena, agitam-se
centenas de pessoas - assistentes, técnicos, cantores,
actores, elementos do coro, uma leva de figurantes. Daqui
a algumas horas chegará ainda o octeto vocal madrigalista
Swingle Singers.
Todo este espectáculo - à sua maneira também
ele uma superprodução -, assente numa carpintaria
forte e em efeitos cénicos que prendem o olhar, foi
produzido - e cronometrado - pela imaginação
de Jerôme Savary, o encenador que Lisboa descobriu
com a "Zazou", em recente noite de pompa, circunstância
e espectáculo.
Saramago:
"O livro é o livro, a música é
a música, mas há o... encenador. E eu achei
a encenação magnífica! Se o livro abre
caminhos para soluções cénicas, o Savary
explorou esses caminhos com efeitos cénicos deslumbrantes.
Um dos factores do êxito da ópera em Milão
foi certamente esta encenação... "
O escritor olha Kathia Lytting no palco e emociona-se: "Ela
tem o temperamento e a voz duma diva... É uma wagneriana..."
A soprano é bela e jovem e sedutora. Há um
ano, quando pela primeira vez cantou "Blimunda",
estava grávida. Viveu com tanta intensidade o seu
personagem que disse a si própria que se lhe nascesse
uma filha teria o mesmo nome.
"Assim foi, assim é: nasceu uma menina, chama-se
Blimunda...", recorda, sorrindo, José Saramago.
Blimunda-mulher, heroína desse fresco memorável
que é o "Memorial do Convento". Hoje, passados
que são já alguns anos sobre o momento e o
acto da escrita, ainda a ama, como então, o escritor?
Pausa.
"Essa senhora fez-se a si própria. Nunca a projectei
para ser assim ou assim... Foi no processo da escrita que
a personagem se foi formando. E ela surge, surgiu-me, com
uma força que a partir de certa altura me limitei
a... acompanhar. Aquele sentimento pleno da personagem que
se faz a si mesma é a Blimunda. Mas, é curioso,
só no fim me apercebi de que tinha escrito uma história
de amor sem palavras de amor... Eles, o Baltasar e a Blimunda,
não precisaram afinal de as dizer... E no entanto,
o leitor percebe que aquele é um amor de entranhas...
Julgo que isso resulta da personagem feminina. É
ela que impõe as regras do jogo... Porquê?
(sorriso) Porque é assim na vida... A mulher é
o motor do homem. (Pausa) Se você vir, os meus personagens
masculinos são mais débeis, são homens
que têm duvidas, são personagens masculinos
com complexos... As mulheres, não."
José Saramago tem hoje os seus seis romances traduzidos
em vinte e seis línguas. O escritor ri: "Do
finlandês ao hebreu, do grego ao búlgaro..."
E depois: "Tenho uma reduzida capacidade de acompanhar
tudo isso. Há certos tradutores que têm o escrúpulo
de pedir esclarecimentos, de apresentar duvidas. Mas (suspiro),
há outros que não perguntam nada. Há
um ou outro caso em que faço uma revisão aqui,
em Portugal. Mas claro que se trata, no geral, de uma verificação
que me escapa. "
A fama, o sucesso, o dinheiro, a invulgar notoriedade que
hoje rodeia a sua assinatura, parecem não impedir
a sua aparente serenidade ou contenção. Está-lhe
no carácter essa forma de respirar perante os outros.
Mas nas entrelinhas resvalam muitas vezes palavras reveladoras
da vaidade, e sobre elas, não raro, desliza a sombra
do orgulho.
"Essa espuma é lisonjeira, todos gostam de ser
estimados... E eu acredito na sinceridade disso... Às
vezes, todas estas solicitações ou este barulho
podem ser opressivos, porque me roubam tempo e disponibilidade.
Sobre o dinheiro, gostaria apenas de dizer que vivo do meu
trabalho. Desejaria que isso fosse para os outros um direito
e uma possibilidade. Mas gostava de voltar a isso da responsabilidade,
porque no fundo, o sentimento principal é esse...
Não é por importância, mas por verificar
- através das reacções e das atitudes
em Portugal ou lá fora, no estrangeiro - que transporto
comigo uma certa responsabilidade... Eu quase diria que
sou representante da língua que falamos, da nossa
cultura... E não evito esta impressão de levar
o meu país comigo..."