Vinhas da Ira
Jonh Steinbeck


 


Prémio Nobel
1962


 

As primeiras páginas de "As Vinhas da Ira"
I

Para a região vermelha e parte da região cinzenta de Oklahoma, as últimas chuvas caíram suavemente, sem penetrarem fundo na terra escalavrada. Os arados cruzaram e recruzaram os campos molhados. As últimas chuvas deram um avanço rápido ao milho e espalharam à beira das estradas moitas de ervas daninhas e de relva, de modo que a região vermelha e a região cinzenta começaram a desaparecer sob um tapete verde. Nos últimos dias de Maio, o céu tornou-se pálido, e as nuvens, que tinham pairado em altos flocos por tanto tempo, durante a Primavera, dissiparam-se. O Sol faiscava sobre o milho em crescimento dia após dia até que, ao longo do gume de cada baioneta verde, se estendeu uma linha acastanhada. Às nuvens apareceram e fugiram, e, durante algum tempo, não voltaram a surgir. Às ervas daninhas tornaram-se de um verde mais escuro para se protegerem e não se alastraram mais. A superfície da terra tornou-se dura, com uma crosta leve, e, assim como o céu se descorou, assim a terra empalideceu, tornando-se rosada, na região vermelha, e branca, na região cinzenta.
Nos barrancos cortados pela água, a terra esboroava-se, caindo em pequenos fios secos. Roedores e formigas pululavam. E, à medida que o sol se tornava mais intenso, as folhas tenras do milho perdiam rigidez e verticalidade; inclinavam-se a princípio numa curva, e, depois, quando a força central enfraquecia, cada folha pendia desanimadamente. Chegou Junho. O Sol queimava mais incisivamente. A linha acastanhada das folhas do milho alargava-se, deslocando-se para o centro. As ervas daninhas tombavam enlanguescidas. O ar era transparente, e o céu estava mais pálido, e, de dia para dia, a terra perdia cor.
Nas estradas, onde o gado transitava e onde as rodas dos carros moíam o chão e as patas dos cavalos calcavam a terra, rompia-se a crosta de lama e formava-se a poeira. Tudo o que se movia lançava a poeira no ar; um viandante levantava uma camada, que lhe chegava
à cintura, uma carroça fazia-a subir até aos taipais e um automóvel deixava uma nuvem atrás de si. E só muito tempo depois a poeira acabava por assentar.
Em meados de Junho, apareceram dos lados do Texas e do Golfo nuvens muito densas, carregadas de chuva. Os homens, nos campos, olhavam para as nuvens, fungavam e estendiam os dedos húmidos, a ver de onde soprava o vento. E os cavalos ficavam nervosos, com as nuvens assim a pairar. Então, estas deixaram cair uns borrifos de água e abalaram para outra região. Por detrás delas, o céu ficou outra vez pálido, e o Sol flamejou. Na poeira havia pequenos buracos abertos pelas gotas de chuva, que tinham enchido o milho de salpicos, e foi tudo.
Uma brisa suave seguiu-se às nuvens de chuva, impelindo-as para o norte, uma brisa que sacudiu brandamente o milho em vias de secar. Decorreu um dia, e o vento aumentou, constante, sem rajadas. A poeira das estradas subiu, espraiou-se e caiu sobre as ervas da margem dos campos, descendo também em pequena quantidade sobre esses mesmos campos. O vento agora tornava-se mais rijo, soprando sobre a terra húmida nas áreas do milho. Pouco a pouco, o céu escureceu com as nuvens de poeira, e o vento revolveu a terra, desprendeu a poeira e levou-a consigo. O vento tornou-se mais forte. A crosta formada pela chuva ressecou, e a poeira levantou-se dos campos e ergueu no ar plumas cor de cinza, semelhantes a fumo que se espraiasse lentamente. O milho oscilava com o vento, emitindo um som seco e tumultuoso. A poeira mais fina não voltou a fixar-se na terra, desaparecendo no céu enegrecido.
O vendaval tornou-se ainda mais furioso; abalou as pedras, arrebatou as palhas, as folhas ressequidas e até os pequenos torrões, deixando assinalada a sua viagem através dos campos. O ar e o céu escureceram, e, através deles, o Sol rompia numa mancha vermelha. Pairava um cheiro acre na atmosfera. Durante uma noite, a rajada fustigou ainda mais a terra, ferindo as radículas do milho; as folhas, enfraquecidas, lutaram com o vento, até que as raízes se desprenderam e depois, cada haste se inclinou indolentemente para o chão, na direcção do temporal.
Surgiu a madrugada, mas não a claridade do dia. No céu pardo apareceu um sol sangrento, um circulo vermelho opaco que dava uma luz crepuscular; e, à medida que o dia avançava, o crepúsculo convertia-se em escuridão e o vento uivava e gemia sobre os grãos caídos.
Homens e mulheres refugiavam-se precipitadamente nas casas e, quando saíam, atavam lenços ao nariz e punham óculos para proteger os olhos.
Essa noite foi uma noite negra, porque as estrelas não logravam perfurar a poeira com o seu clarão, e as luzes das janelas não conseguiam brilhar para além do seu pequeno circulo. A poeira tinha-se misturado inteiramente com o ar; era uma emulsão de ar e de poeira. As casas estavam hermeticamente fechadas, com trapos a tapar as frestas das portas e janelas, mas a poeira infiltrava-se tão subtilmente que se não via no ar, depositando-se como pólen nas mesas, nas cadeiras e nos pratos. As pessoas sacudiam-na dos ombros. Pequenos riscos de poeira depositavam-se nas soleiras das portas.
A meio dessa noite, o vento passou e deixou a terra sossegada. O ar, impregnado de poeira, velava tudo mais completamente que um nevoeiro cerrado. As pessoas, deitadas em suas camas, ouviram cessar a ventania. Despertaram com o retirar daquele vento impetuoso. Ficaram quietas, perscrutando intensamente o silêncio. Depois cantaram os galos, mas o seu canto era abafado, e a gente remexia-se na cama sem descanso, ansiando pela manhã. Sabiam que, durante muito tempo, o ar se não libertaria daquele pó. Pela manhã, a poeira pairava como um nevoeiro, e o Sol estava vermelho como sangue fresco. Todo o dia a poeira se peneirou do céu e, no dia seguinte, continuou a escorrer da mesma forma. A terra cobriu-se de um manto uniforme. Pousava sobre o milho, amontoava-se nas estacas das vedações e nos fios telegráficos; assentava sobre os telhados e ocultava as plantas e as árvores.
As pessoas saíam de suas casas e, depois de aspirarem o ar quente e picante, tapavam o nariz com desgosto. As crianças também saíam de casa, mas sem correrem ou gritarem, como fariam se tivesse caído uma bátega de chuva. Os homens postavam-se junto das suas vedações, a olharem para os milheirais devastados, agora a secarem inteiramente, apenas com fiapos verdes a mostrarem-se através da camada de pó. Os homens conservavam-se calados e pouco se moviam. E as mulheres saíam das casas, para se porem ao lado dos homens - a ver se desta vez eles desanimavam. As mulheres perscrutavam os rostos dos maridos porque o milho podia desaparecer, contanto que o resto ficasse. Ás crianças mantinham-se por ali, desenhando figuras na poeira com os dedos dos pés nus, e elas próprias olhavam às vezes para os homens e para as mulheres, a ver se o desânimo se estampava na cara dos pais. Os cavalos chegavam-se às selhas e abriam com o focinho as camadas de pó que cobriam a água. Não tardou muito que os rostos dos homens perdessem a confusa indecisão e se tornassem duros, irados e persistentes. Então as mulheres perceberam que estavam salvas e que não havia desânimo. E perguntaram: «Que vamos fazer?». E os homens responderam:
«Não sei». Mas tudo acabava em bem. As mulheres sabiam que não havia dúvida e as crianças também sabiam que assim era. As mulheres e as crianças tinham a convicção profunda de que não havia desgraça, por mais inclemente, que não fossem capazes de sofrer, se os seus homens se conservassem à altura. As mulheres foram para dentro das casas trabalhar e as crianças puseram-se a brincar, embora a princípio o fizessem cautelosamente. A medida que o dia avançava, o Sol perdia a vermelhidão, faiscando sobre a terra coberta de poeira. Os homens sentaram-se à soleira das portas; as mãos dedilhando nos gravetos e pedregulhos. Mantinham-se imóveis, sem, no entanto, deixarem de meditar e de fazer conjecturas.