"Que
Fiz Eu para Merecer Isto?", de Pedro Almodóvar, na Série
Y
Por Vasco T. Menezes
Fábula perversa e mordaz sobre a vida
contemporânea pelo autor de “Fala com Ela”
O dia-a-dia de uma típica dona de casa madrilena.
Viciada em anfetaminas (para conseguir ter energia para trabalhar
também como mulher-a-dias), Gloria (Cármen Maura)
vive num apartamento exíguo e sobrelotado com o marido, António
(Angel De Andres-López), um taxista apaixonado pela cantora
alemã de quem foi motorista, dois filhos que descobriram
os benefícios monetários do tráfico de droga
e da prostituição e a sogra avarenta que vende aos
restantes membros da família madalenas e água com
gás. Há ainda a vizinha prostituta (Verónica
Forqué), um polícia impotente, dois escritores falhados
e alcoólicos, uma criança com estranhos poderes mentais
e um lagarto de estimação chamado “Dinheiro”…
“Que Fiz Eu para Merecer Isto?” (1984)
é o quarto filme de Pedro Almodóvar, provavelmente
o realizador espanhol mais internacionalmente aclamado desde Luis
Buñuel. Por esta época, os Óscares e o reconhecimento
de Hollywood ainda vinham longe e Almodóvar era “apeuma
das figuras de proa da “Movida”, o movimento contracultural
surgido em Madrid no final dos anos 70 como reacção
ao final da ditadura franquista.
Nesses primeiros tempos a Espanha permissiva e democrática,
o realizador fez um pouco de tudo, desde o teatro à BD, passando
pela escrita e o cinema em Super-8 (ao mesmo tempo em que, durante
o dia, trabalhava na Companhia Telefónica Nacional…),
assumindo-se desde o início como um observador atento e mordaz
da realidade espanhola, dos seus vícios e peculiaridades,
num tom provocatório e ousado.
“Que Fiz Eu…” fica então
como um dos melhores exemplos desse cinema neurótico e dinâmico,
fazendo gala de uma sensibilidade marcadamente “camp”
e “kitsch” (ainda hoje presente nos filmes mais recentes
e “sérios” do cineasta) e pondo em cena uma galeria
irresistível de personagens excêntricas.
Numa sucessão de “gags” tresloucados
por onde passa um humor absurdo e negro, entre o grotesco e o escabroso,
Almodóvar propõe uma visão satírica
e subversiva das relações familiares e pessoais na
sociedade moderna. É um objecto delicioso e inclassificável
— da farsa ao drama, da comédia ao fantástico
— que mistura, de forma improvável, Buñuel,
De Palma, Wilder ou John Waters.
Por razões que nos são alheias,
“Que Fiz Eu para Merecer isto?” substitui “A Lei
do Desejo”, também de Pedro Almodóvar, que chegou
a estar anunciado na Série Y.
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