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                    Umberto Eco 
                    O que foi a minha vida sob o signo 
                     
                    do sucesso 
                    Por Laura Lilli 
                   
                    O primeiro livro da colecção 
                      Mil Folhas, que será distribuído gratuitamente 
                      na próxima quarta-feira com o jornal, é "O 
                      Nome da Rosa", do escritor italiano Umberto Eco, que 
                      foi um dos maiores best-sellers dos últimos anos. 
                      Por altura dos seus 70 anos, no início deste ano 
                      - a 5 de Janeiro -, Eco, que não gosta de entrevistas, 
                      aceitou fazer um balanço da sua carreira. 
                      De facto, apesar de a fama mundial e de o facto de ter sido 
                      o primeiro a teorizar, em Itália, a importância 
                      da comunicação de massas, o escritor desconfia 
                      dos jornais, ou melhor, desconfia dos jornalistas - ele 
                      que escreve sobre jornais. Mas conseguimos que se abrisse 
                      uma porta. E colocámos-lhe algumas questões 
                      destinadas a desenhar o seu retrato ao entrar naquela que 
                      há muito tempo era considerada a idade da sabedoria. 
                   
                   
                     Umberto 
                    Eco, até ao final da década de 60 foi um mestre 
                    da irreverência e da desmitificação. Alguma 
                    vez pensou vir a tornar-se não apenas uma celebridade 
                    mundial adequadamente premiada e venerada, mas também, 
                    para muita gente em Itália, uma espécie de pai 
                    da pátria? 
                    Pai da pátria? A pátria, 
                    quando procurou um pai, escolheu Berlusconi. Eu sou um falhado. 
                    Em criança queria ser cobrador de bilhetes de eléctrico, 
                    porque tinham bolsas lindíssimas com dez divisões 
                    cheias de maços de bilhetes de várias cores. 
                    Não era como agora, que se entra no metro introduzindo 
                    o bilhete numa maquineta automática. Um pouco mais 
                    tarde quis ser general (no tempo do fascismo o modelo era 
                    o guerreiro) e em vez disso, cumprido o serviço militar, 
                    passei à reserva com a patente de cabo da infantaria 
                    distrital. Como se isto não bastasse, nos anos 60 participei 
                    na fundação do Comité para o Desarmamento 
                    Nuclear. Mas a minha verdadeira ambição era 
                    ter sido pianista num piano bar. Até às duas 
                    ou três da manhã, de cigarro ao canto dos lábios, 
                    com um whisky, a tocar Smoke gets in your eyes e Time passing 
                    by. Correu mal. Bem, paciência. 
                  Que desastre. 
                    E em vez disso, na sua infância, não havia sintomas 
                    de que viria a tornar-se escritor? 
                    Sim, na realidade havia. Desde 
                    pequeno que também queria escrever romances. Comecei 
                    do seguinte modo: pegava num caderno e escrevia o frontispício. 
                    O título era tipo salgariano, género "Os 
                    Corredores do Labrador" ou "A Intriga Fantasma". 
                    Depois escrevia o nome do editor em baixo, Tipografia Matenna 
                    (audaz síntese de "matita" [lápis] 
                    e "penna" [caneta]). Depois, de dez em dez páginas 
                    colocava uma gravura do género das de Della Valle ou 
                    Amato nos livros de Salgari. A ilustração escolhida 
                    determinava a história que deveria então escrever. 
                    Escrevia algumas páginas do primeiro capítulo. 
                    Escrevia ao correr da pena, não me permitia qualquer 
                    correcção. É claro que depois de algumas 
                    páginas abandonava o empreendimento. Assim fui, naquele 
                    tempo, o autor de alguns romances inacabados. 
                  E a ensaística? 
                    Também a esse respeito tenho 
                    algumas provas da adolescência (a propósito, 
                    conto-as numa colectânea de ensaios que está 
                    para sair, com o título "Sulla letteratura" 
                    [Sobre a literatura]. Quanto ao resto, como se encontra registado 
                    e documentado, só mais tarde vim a ocupar-me apenas 
                    da ensaística, quase aos 50 anos. Por favor, não 
                    me pergunte como é que escrevi o meu primeiro romance, 
                    porque já estou farto da pergunta e de cada vez dei 
                    uma resposta diferente (obviamente todas falsas). Digamos 
                    que o fiz porque tive vontade, e se isto não lhe parece 
                    uma boa razão, então não percebe nada 
                    de literatura. Enfim, escrevi-o e chega. E assim vinguei a 
                    minha infância de romancista incompleto. 
                     
                  Evitarei então 
                    repetir uma pergunta que já lhe fiz, e que poderia 
                    parecer insultuosa. Mas se calhar a resposta que deu em 1980 
                    quando publicou "O Nome da Rosa" - 'aconteceu-me 
                    fazê-lo, como acontece fazermos chichi' - não 
                    era completamente falsa. Em vez disso perguntar-lhe-ei qual 
                    é, dos inúmeros livros que publicou, aquele 
                    que mais ama? 
                    Não posso responder-lhe, 
                    senão os outros ficam ofendidos. Mas posso afirmar 
                    uma coisa. Depois do êxito de "O Nome da Rosa" 
                    editores de vários países foram à procura 
                    dos meus livros anteriores que não tinham sido traduzidos. 
                    O meu primeiro livro, o "Problema Estético em 
                    Tomás de Aquino", tinha sido a minha tese de doutoramento 
                    e tinham sido impressos, creio, 300 exemplares numa editora 
                    universitária. De repente foi traduzido para as línguas 
                    principais. Na América saiu na Harvard University Press, 
                    em França, na Presses Universitaires, em suma nos lugares 
                    mais cobiçados. Bom, fiquei mais contente com esta 
                    tradução do que com todas as cópias de 
                    "O Nome da Rosa" ou dos romances subsequentes. 
                  Assim sendo, 
                    para evitar que as suas obras se ofendam, nem sequer posso 
                    perguntar-lhe qual delas ama menos. Mas gostaria de saber 
                    o que pensa hoje de alguns dos seus ensaios do início 
                    da década de 60 como a "A Obra Aberta" ou 
                    "Apocalípticos e Integrados"? 
                    Um livro como "Apocalípticos 
                    e Integrados" suscitou muitas polémicas, foi traduzido 
                    em todo o lado, continua a vender, e na América Latina, 
                    quiçá porque é a minha obra mais conhecida. 
                    Estudam-na em toda a parte. Mas era uma misturada, uma recolha 
                    de ensaios exploratórios, aborrece-me muito que continue 
                    a ser publicado. 
                  Ainda dentro 
                    da temática do revivalismo: fale-nos um pouco da neovanguarda 
                    do Grupo 63, da qual fez parte. 
                    Para começar, o termo neovanguarda, 
                    se bem que aquele 'neo' devesse ter posto as pessoas de sobreaviso, 
                    provocou uma confusão de ideias. O Grupo 63 não 
                    era composto por boémios que protestavam contra a sociedade 
                    literária de que se encontravam excluídos. Alguns 
                    dos elementos do grupo estavam já bem inseridos nas 
                    editoras, nos jornais, na RAI, os artistas expunham nas galerias 
                    mais conceituadas. Não foi uma polémica contra 
                    o establishment, foi uma revolta de dentro do establishment, 
                    um fenómeno por certo novo no que respeita às 
                    vanguardas históricas. 
                  Falava-se da 
                    vanguarda em carruagem-cama
 
                    Certamente, se bem que seja verdade que os incendiários 
                    históricos eram incendiários que posteriormente 
                    morriam bombeiros. O Grupo 63 foi um movimento que nasceu 
                    num quartel de bombeiros donde alguns terem acabado como incendiários. 
                    Este aspecto (talvez típico da nova cultura tecnológica, 
                    do neocapitalismo desses anos, da profunda transformação 
                    da indústria cultural) talvez ainda não tenha 
                    sido bem estudado. Mais: gostava de notar que o Grupo 63 foi 
                    inventado pelos inimigos do Grupo 63. 
                  Tinha-o iniciado 
                    com Bassani, com Cassola e também com "O Leopardo"
 
                    Sim, mas muitas vezes era apenas 
                    uma questão de carácter. Creio que muitos do 
                    grupo veneravam Montale, mas quem os unia, buliçoso 
                    e alegre, era Ungaretti. Recordo-me que, anos mais tarde, 
                    quando estava a passar três meses no apartamento de 
                    um amigo na América, li Bassani de uma ponta a outra. 
                    E agradou-me; na realidade disse-lho mais tarde. 
                  A propósito, 
                    se não de inovadores pelo menos de inovação: 
                    hoje vivemos todos com o computador. Mas neste campo o senhor 
                    foi um pioneiro em Itália
 
                    Comecei a utilizá-lo em 
                    83. Fiz logo que me dessem quatro ou cinco Olivetti para o 
                    meu instituto na universidade e mandei treinar aquela geração 
                    de estudantes. 
                  Essa mesma 
                    universidade era uma inovação. Era o Dams, não 
                    é verdade? 
                    Quando lá cheguei tinha 
                    sido fundado há menos de um ano, não havia mais 
                    de 50 alunos e estávamos juntos de manhã até 
                    à noite. Toda a gente pensava que era um local para 
                    os aspirantes a artistas, mas foi lá que fiz nascer 
                    o primeiro centro de estudos peircianos e dava aulas sobre 
                    o "Crátilo" de Platão e coisas do 
                    género. Mas isso também é história. 
                    Desde o início dos anos 90 que já não 
                    estou no Dams. 
                  O que o fascina 
                    no computador? 
                    Descobri, como conto em "O 
                    Pêndulo de Foucault", que é o instrumento 
                    mais espiritual que já existiu, porque a velocidade 
                    da escrita permite colocar tudo o que nos passa pela cabeça 
                    e seguir tudo o que te vai no cérebro. E depois há 
                    tempo para corrigir, pois é óbvio que vale a 
                    pena guardar tudo o que nos passa pelo cérebro. E no 
                    entretanto realizei o sonho dos surrealistas, a escrita automática. 
                  E agora conseguiria 
                    viver sem um computador? 
                    Às vezes acho que não, 
                    não por aquilo que tenho de escrever, mas sim por aquilo 
                    que já escrevi, porque agora constitui a memória 
                    de todos os meus gestos. 
                  Mas
 
                    Sim, há um 'mas'. E não 
                    é pequeno. Repare, eu tive uma educação 
                    católica na adolescência, intensa, refiro-me 
                    a uma educação para o sacrifício e para 
                    o desprezo pelas coisas terrenas. Além disso, em criança 
                    cresci numa economia de guerra, com o espectro da fome ou 
                    com a perspectiva de que a casa em que vivia fosse destruída 
                    por uma bomba. Tinha de estar sempre mentalizado para perder 
                    tudo o que até ao momento possuía. E eis-me 
                    pronto para o grande blackout de todos os computadores do 
                    mundo. Na semana passada, ao fazer um gesto errado quando 
                    mudava a pilha, apaguei toda a minha agenda electrónica. 
                    Após algumas horas de desespero, apercebi-me de que 
                    é possível viver sem números de telefone. 
                    Basta não telefonarmos às pessoas. O que temos 
                    de tão interessante para dizer-lhes? 
                  Continuando 
                    a falar de inovações, voltemos ao início 
                    da sua biografia. Em 1954 trabalhou na RAI de Turim e, desse 
                    modo, terá contribuído para a criação 
                    da televisão em Itália. 
                    Entrei por acaso. Durante o Verão 
                    tinha acabado a minha tese, mas ainda estávamos em 
                    Setembro, não tinha defendido a tese e não era 
                    diplomado. Estava aberto concurso para apresentadores de televisão. 
                    Um tipo da rádio escolheu-me, a mim, ao Furio Colombo, 
                    ao Gianni Vattimo e ao Michele Straniero. Lembro-me que dissemos 
                    todos que não não tínhamos interesse 
                    nenhum em ser apresentadores de televisão, mas que 
                    era um modo de entrarmos na RAI. 
                  O concurso 
                    foi em Turim? 
                    Não, em Milão. Lá 
                    fomos, prova escrita com uma artigo de jornal, e depois dei 
                    por mim num estúdio sombrio, apenas com uma pequena 
                    luz, e vozes misteriosas que vinham do alto (uma delas era 
                    de Vittorio Veltroni, o pai de Walter, que naquele tempo dirigia 
                    o telejornal). Perguntaram-me como organizaria uma emissão 
                    televisiva sobre poesia. Eu quase nunca tinha visto televisão, 
                    para além de dez minutos num bar, por isso apelei à 
                    imaginação. Respondi que faria recitar versos 
                    de Montale, aqueles sobre a muralha que tem em cima alguns 
                    pedaços de vidro, e no fundo passava imagens de alguns 
                    caminhos da Ligúria, onde há muralhas e vidros 
                    sob o sol que cega. 
                  E convenceu-os? 
                    Acho que ainda ninguém tinha 
                    tentado emissões de TV com poesia, e aqueles lá 
                    no alto ficaram fascinados com a ideia. Fui aceite, juntamente 
                    com Colombo e Vattimo. O Straniero não, não 
                    sei por que razão. Foi uma grande injustiça, 
                    pois de nós quatro ele era o mais espectacular. Encontrámo-nos 
                    depois com aqueles que nos anos seguintes viriam a tornar-se 
                    os apresentadores mais famosos: Tito Stagno, Adriano de Zan, 
                    Sparano, Oddo, e a incrível personagem que era Carlo 
                    Mazzarella. Durante três meses tivemos excelentes professores, 
                    como Pier Emilio Gennarini e Umberto Segre... 
                  E apresentou 
                    notícias? 
                    Não, pois tenho um 'r' fortíssimo, 
                    e naquela altura ainda havia o culto da pronúncia correcta. 
                    Mandaram-me para a secretaria. Era onde se fazia o palimpsesto, 
                    onde se recolhia e tratava toda a informação 
                    relativa aos programas, logo era um ponto de observação 
                    central para compreender todo o mecanismo da televisão. 
                    Por seu lado, Colombo e Vattimo foram para Turim, onde fizeram 
                    uma transmissão para jovens denominada Horizontes e 
                    que foi verdadeiramente pioneira naquela época. Em 
                    cada uma das transmissões estava o Scelba, ou outro 
                    qualquer, que pegava no telefone e ligava para o administrador 
                    delegado da RAI para perguntar se era possível permitir 
                    que a televisão do Estado dissesse coisas daquelas. 
                  E o senhor, 
                    além de observar, que fazia? 
                    Oficialmente nada, durante quatro 
                    anos. Se bem que na realidade fôssemos os autores de 
                    inúmeros textos, pois reescrevíamos os dos colaboradores 
                    externos, que apareciam como os autores. Mas aprendi muitas 
                    coisas, conheci músicos como Berio e Maderna, vivi 
                    no meio dos autores. Trabalhei com a grande personagem que 
                    foi Ferdinando Ballo (o das edições Rosa e Ballo, 
                    que durante a guerra deu a conhecer muita literatura mundial 
                    em Itália) e acontecia-me encontrar no seu estúdio, 
                    sei lá, Brecht ou Stravinski 
                  Nada de convívios 
                    com actrizes, apresentadoras
 
                    Compreende-se. Nós 
                    éramos os funcionários muitíssimo jovens 
                    e era natural que depois saíssemos para dançar 
                    com as raparigas da nossa idade, que eram precisamente actrizes, 
                    manequins, bailarinas, cantoras. Eram célebres os nossos 
                    serões semanais num pequeno apartamento com varanda 
                    que partilhava com dois amigos: a nata da "intelligentzia" 
                    milanesa (poetas, filósofos, artistas) e da graça 
                    feminina (ou seja, todas aquelas raparigas que os outros apenas 
                    viam no ecrã). Bebia-se Cuba libre, ou seja, Coca Cola 
                    e rum, porque era o mais barato. Ganhava 60 mil liras. Ainda 
                    bem que nesses mesmos anos passava muitas noites a estudar 
                    para me preparar lentamente para a "libera docenza" 
                    ["docência livre" - título académico 
                    que permite ensinar a título particular nas universidades 
                    e em outros institutos superiores]. Trabalhava de noite e 
                    divertia-me de dia. Mas, repito, vi a televisão por 
                    dentro, segui todos os seus mecanismos, por esta razão 
                    posteriormente fui dos primeiros a escrever sobre a comunicação 
                    de massas, porque teorizava a partir de uma experiência 
                    concreta. 
                  Quando começou 
                    a trabalhar para a editora Bompiani? 
                    Aos poucos. Um dia, Ottiero Ottieri, 
                    que era sobrinho de Valentino Bompiani, mostrou algumas coisas 
                    que eu tinha escrito ao editor. Bompiani precisava reforçar 
                    a redacção e mandou chamar-me. Comecei a trabalhar 
                    para a editora enquanto fazia a tropa. De repente dei por 
                    mim a fazer a colecção Ideias novas, sobre filosofia, 
                    e estava feliz. 
                  Os anos de 
                    editora devem ter sido ricos em experiências
 
                    Sem dúvida. Inicialmente 
                    trabalhávamos junto a Paolo de Benedetti, que agora 
                    é hebraísta a tempo inteiro e a Sergio Morando, 
                    já falecido. Só três piemonteses e Bompiano 
                    dizia-nos que não se havia apercebido que tinha levado 
                    para casa uma mafia piemontesa, mas depois passaram tantos 
                    outros pela editora. Entre os desaparecidos contam-se Nanni 
                    Filippini e Antonio Porta, que conhecíamos pelo nome 
                    verdadeiro, Leo Paolazzi. São também tantos 
                    os que já não se encontram entre nós 
                    de outras editoras: Mario Spagnol, Eric Linder, Luciano Biancardi, 
                    desertor editorial e tradutor por acaso. 
                  Também 
                    ia à Feira do Livro de Frankfurt pela editora Bompiani
 
                    Sim, e na época era um verdadeiro 
                    campo de batalha. Procurava-se descobrir a obra-prima desconhecida, 
                    procurava-se caricaturar a oposição. Circulavam 
                    anciãos respeitáveis, até cheguei ainda 
                    a ver Gaston Gallimard. O frenesi era tal que um dia, ao almoço, 
                    Valentino Bompiani, Paul Flamant, talvez Rohwolt e um outro 
                    de que não me recordo disseram que se alguém 
                    tivesse inventado um autor teriam todos ido à sua procura. 
                    E inventaram Milo Temesvar, que apenas teria escrito "Let 
                    me say it now", pelo qual a American Library dera um 
                    adiantamento de 50.000 dólares (nos primeiros anos 
                    da década de 60). Bompiani volta do almoço, 
                    conta a história a Morando e a mim e começámos 
                    a andar de stand em stand a perguntar solenemente por Temesvar. 
                    Cerca das seis da tarde toda a feira estava em alvoroço. 
                    Às oito, num jantar, Giangiacomo Feltrinelli (nunca 
                    percebi se para desencorajar a concorrência e ter mais 
                    espaço livre para a sua caçada ou por estar 
                    mesmo convencido disso) afirma: "Desistam do Temesvar. 
                    Já comprei os direitos para todo o mundo." Para 
                    mim, Temesvar continua a ser uma pessoa da família. 
                    Algum tempo depois escrevi uma recensão falsa sobre 
                    ele, dizendo que havia sido expulso da Albânia por desvios 
                    esquerdistas e que havia escrito um livro sobre Borges intitulado 
                    "Sobre o Uso dos Espelhos nos Jogos de Xadrez". 
                    Seria de pensar que uma pessoa expulsa da Albânia por 
                    desvios esquerdistas fosse absolutamente inverosímil, 
                    mas vim a saber que Arnoldo Mondadori tinha assinalado a vermelho 
                    aquele artigo, escrevendo "comprar imediatamente". 
                    Milo Temesvar retorna também na minha introdução 
                    de "O Nome da Rosa". Resumindo, hoje estou 
                    também eu convencido da veracidade da sua existência. 
                  Resumindo, 
                    durante a sua vida divertiu-se. Além desse facto, seria 
                    muito atrevimento pedir-lhe, sobre essa mesma vida, um balanço 
                    menos jocoso? 
                    Ao chegar ao 70 anos apercebo-me 
                    que, apesar de ter passado uma vida sem grandes episódios 
                    individuais
 
                  
não 
                    diria isso
 
                    
quero afirmar, sem tragédias, 
                    doenças, exílio, fugas pela pradaria. Apercebo-me, 
                    dizia eu, que apesar disso passei por grandes acontecimentos. 
                    Em criança vivi o fascismo, em adolescente (entre os 
                    doze e os treze anos não se é propriamente uma 
                    testemunha extremamente atenta) o período da resistência, 
                    as tensões da guerra. E por aí fora até 
                    ao atentado às Torres Gémeas
 Sou filho 
                    de uma geração afortunada. Os que eram poucos 
                    anos mais velhos do que eu foram muitíssimo infelizes. 
                    Cresceram sob a ditadura, foram dizimados pela guerra, os 
                    que escaparam não puderam terminar os estudos, tinham 
                    dificuldade em saber o que se passava nos outros países, 
                    na sua grande maioria não liam em línguas estrangeiras
 
                    Então pensamos nos sobreviventes, nos que tiveram sucesso 
                    - personagens como Italo Calvino - mas eram uma minoria. A 
                    minha geração saiu do fascismo aos onze anos 
                    e depois teve todo o tempo do mundo para aprender o que queria; 
                    a nossa adolescência coincidiu com o momento do renascimento 
                    e depois do milagre económico. A nossa geração 
                    foi a primeira a apanhar um avião aos 20 anos, viajámos 
                    por todo o mundo e tivemos o mundo dentro de casa, encontrámos 
                    emprego e desempenhámos funções de responsabilidade 
                    desde muito jovens
 
                  E que pensa 
                    da geração seguinte, a de 68? 
                    Foi dizimada como a anterior à 
                    minha. Diria que apenas um terço entrou para a vida 
                    profissional e para cargos de poder, os outros ficaram desiludidos, 
                    a lamber muitas feridas e outra parte passou por fases ainda 
                    mais escuras. Repare, estou desesperado por ainda ter uma 
                    posição de relevo na universidade, dirigir duas 
                    colecções de editoras, tenho uma rubrica num 
                    semanário e coisas do género. Porque é 
                    que ninguém ainda me matou? Onde estão aqueles 
                    que deveriam ter-me morto, pelo menos há 20 anos, como 
                    nós fizemos aos nosso pais? Que pena, que vergonha
 
                  Digamos que 
                    lhe seria possível matar-se a si próprio - metaforicamente 
                    falando. Tem 70 anos e viveu-os bem. Com os direitos de autor 
                    podia levar uma vida de reformado nas Maldivas. Em vez disso 
                    ainda trabalha na universidade e, segundo me disseram, intensamente. 
                    Porquê? 
                    Poderia dizer que é por 
                    canibalismo. Vejo com terror muitos dos meus contemporâneos 
                    que vivem rodeados apenas por pessoas da nossa idade. Viver 
                    com os jovens sustenta-nos. Comemos um pouco da sua carne 
                    fresca, eles comem um pouco da nossa, dura mas saborosa, como 
                    os bifes argentinos. É apenas a tentar explicá-la 
                    aos outros que compreendemos se a ideia que temos na mente 
                    é justa ou pelo menos se podia ser formulada. Além 
                    disso uma pessoa é obrigada a actualizar-se mesmo quando 
                    não tem vontade
 Em suma, são todas boas 
                    razões, diria que biológicas. Mas existe outra. 
                    É que no mundo dos media as notícias, as noções, 
                    as ideias, consomem-se num dia, chegam a correr, não 
                    vêm aprofundadas e são deitadas fora. A universidade, 
                    com todos os seus imensos defeitos (seculares), ainda é 
                    um local em que pode levar-se um ano a tratar uma ideia. Onde 
                    ainda se conservam as coisas que eram ditas ontem. E onde 
                    ainda existe um laboratório activo e se debatem hoje 
                    as ideias que chegarão aos media daqui a vinte anos. 
                     
                    E este é o segundo modo de derrotar a morte.   
                   
                    
                      
                   
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