Nos “submundos” da imaginação de Júlio Verne
Por RUI PEDRO VIEIRA
Quarta-feira, 10 de Novembro de 2004
Um rigoroso cientista recruta o seu céptico sobrinho e um guia islandês para entrarem na
cratera de um vulcão extinto. Este é o caminho secreto para uma aventura impensável que
Júlio Verne criou além dos limites científicos.
Lia com avidez os jornais e
as revistas de actualidade
científica. Gostava de apontar
num caderno tudo o que a
sua mente lhe sugeria quando
menos esperava. Es-tudava enciclopédias
e, desde pequeno,
sentia um fas-cínio
por máquinas.
Ao contrário
das visões
negativas
de autores
como
George
Orwell ou Aldous
Hux-ley, a
imagem do futuro
que sobressai na obra
de Júlio Verne (1828-1905) é
fascinante e, aparentemente,
positiva.
As potencialidades tecnológicas
tornaram-se na
base ideal para o autor de
“Viagem ao Centro da Terra”
revelar o seu gosto na
criação de situações inéditas,
desafios sem limites, que
nem sempre se adequavam
ao quotidiano do século XIX.
Hoje, o estilo literário de Júlio
Verne — que alia o exotismo
e o desejo de mu-dança com a
pura ficção — é apelidado de
“visionário” por ter previsto,
ao longo das suas mais de 60
obras, invenções como as do
helicóptero, do submarino,
do ar condicionado ou dos
mísseis teleguiados.
Admirador de relatos de
aventuras como “As Viagens
de Gulliver”, de Jonathan
Swift, ou dos contos macabros
de Edgar Allan Poe, Júlio Verne
começou por estudar leis,
no curso de Direito, mas era
na poesia e no teatro que desejava
alcançar o êxito. Chegou
a escrever dois libretos
e um argumento para uma
comédia, mas o seu destino
estava prestes a sofrer uma
mudança radical a partir do
momento em que contactou
o editor Pierre-Jules Hetzel.
A literatura seria o seu próximo
passo, “gigante” como
o de Neil Armstrong quando
aterrou na Lua, em 1969.
“A Volta Ao Mundo em 80
Dias” e “Vinte Mil Léguas
Submarinas” tornaram-se
obras mundialmente famo-sas,
tal como a odisseia subterrânea
de “Viagem ao Centro da
Terra”. Em comum, possuem
os espaços artificiais, as peripécias
numa luta desesperada
contra o tempo, as “engenhocas”
verosímeis e o desejo de
conquista do desconhecido.
As histórias, que parecem resumir-
se a um ímpeto aventureiro,
conquistaram milhões
de leitores e foram adaptadas
com êxito no cinema.
O desejo de fazer poesia
concretizou-se na imaginação
desmesurada com que Júlio Verne descreve cada per-sonagem
ou cada novo objecto
presente nas suas obras. O
escritor chegou a reconhecer
que “os poetas não são necessariamente
sonhadores, mas
profetas”.
Admirável mundo novo
Em “Viagem ao Centro da
Terra”, o desafio é, mais
uma vez, ambicioso: traçar
uma hipotética rota até “ao
coração” do planeta, que
tem o seu ponto de partida
na cratera de um vulcão
islandês extinto, o Sniffels.
A descoberta, que vai levar
o sábio Otto Lidenbrock,
personagem rigorosa e nem
sempre muito afável com
aqueles que o rodeiam, a
seguir por territórios ainda
hoje inexplorados, parte de
um velho manuscrito de um
célebre cientista islandês do
século XVI, Arne Saknussemm.
A seu lado está o céptico
sobrinho, Axel, o narrador
da história, que se deixa levar
pelos seus delírios científicos,
mas que é o elo mais próximo
do leitor por espelhar as dúvidas
e os receios do senso
comum. Porém, as peripécias
criadas por Verne costumam
fugir aos limites do que é conhecido
e, por isso mesmo, o
escritor francês foi considerado,
a par com H.G. Wells, o
“pai da ficção científica”.
Com a ajuda do tímido
Hans, um islandês que guia
os dois protagonistas até ao
vulcão Sniffels, a acção de
“Viagem ao Centro na Terra”
mergulha nas “entranhas” daTerra e o regresso à superfície
parece uma miragem
perigosa. O que não
demove o espírito de
descoberta de Lidenbrock,
capaz de lidar
com o insólito. Neste
sub-mundo desconhecido,
criaturas pré-históricas,
peixes e outros seres parecem co-existir num estranho
ambiente “natural”.
Para concluir a missão, o
trio de exploradores sofre um
conjunto de contrariedades
que os separa para depois os
unir com mais intensidade.
Além de ser um excelente
contador de histórias
“científicas”, Júlio Verne
revela também um extremo
cuidado na composição das
personagens. Axel sintetiza,
a certa altura, o fascínio desta
expedição: “Contemplava
em silêncio todas estas maravilhas.
Faltavam-me as
palavras para traduzir as
sensações. Pensava que estava
a assistir, em qualquer
planeta longínquo, Úrano
ou Neptuno, a fenómenos
de que a minha natureza
‘terráquea’ não tinha plena
consciência. Para sensações
novas precisava de palavras
novas e a minha imaginação
não conseguia fornecê-las.”
“Viagem ao Centro da Terra” é também uma análise
às convicções humanas. E,
a centenas de quilómetros
da superfície, estas são mais
instáveis do que a própria
textura do subsolo.
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