- 23 de Agosto de 2001
- 24 de Agosto de 2001

Caderno Eleitoral
Outra vez a olhar para a montanha
Por Luciano Alvarez
Sábado, 25 de Agosto de 2001

O bairro de Becora, conhecido como o "inferno" nos dias da ocupação indonésia por ali se verificarem conflitos frequentes entre os independentistas e as forças ocupantes, vive, como toda a cidade de Díli, dias de tranquilidade. Um bairro popular, de gente muito pobre e desempregada, cuja maioria vive ainda em casas com telhados e paredes mal amanhadas. Ali o dinheiro mal chega para a comida, quanto mais para recuperar as casas destruídas nos dias da brasa de 1999. Por isso as paredes e telhados são ainda chapas de zinco, "coladas" com restos de madeiras ou de cartão, com toda a violência da destruição de Setembro de 1999 ainda à vista.

Becora fica no sopé da montanha. Uma montanha que substituía as casas quando as coisas aqueciam. Uma montanha amiga e protectora que salvou muitas vidas das balas inimigas. Hoje, com eleições à porta, surgem as más recordações do passado e o povo volta a olhar para a montanha que fica às portas de sua casa. "Aqui todos vão votar no dia 30, mas se houver problemas as mulheres e as crianças vão logo para as montanhas", diz Marcelino Caetano, um homem de 66 anos que ali vive desde sempre.

A conversa lançada pelo jornalista solta-lhe de imediato a língua. Fala sem parar. Conta histórias dos tempos dos portugueses, da sua passagem pela tropa como "mecânico de primeira". Da invasão indonésia, dos "tempos da morte", da resistência, da "destruição de 1999", quando teve de fugir para a região de Dare com a família. Difícil é fazê-lo parar.

"Isto hoje é tudo melhor. Não há dinheiro, mas é melhor. Timor agora é um país sem problemas de guerra", afirma quando a conversa chega ao presente. Por isso, garante que no dia 30 vai votar "nem que seja a rastejar." E assegura não ter dúvidas que "desta vez não vai haver problema". "O problema" - afinal sempre havia um problema - "é se os que ganharem e perderem começam com a coisa". E a "coisa", para o senhor Marcelino, é "vir um provocar o outro, e depois mais outro, e mais outro e a coisa começa". "Depois vêm grupos que por aí andam para roubar, e tropa e mais os que não querem paz e pronto."

Coisa que Marcelino não acredita que aconteça. Bem, "talvez não aconteça". Ou melhor: "Não vai acontecer, mas pode acontecer." Nesta altura, a conversa com o jornalista já é repartida com mais dois amigos de Marcelino. Também têm muitas história para contar, algumas perguntas sobre Portugal para fazer e mais certezas que Marcelino sobre o presente. "Ainda anda muito ódio por aí. Muita vingança prometida e cada vez mais bandidos", diz o senhor José. "O povinho está feliz com a independência mas ainda tem muito medo", acrescenta o senhor Lucas.

Nenhum deles tem dúvidas de que o povo voltará para as montanhas caso "a coisa", como diz o senhor Marcelino, aconteça. "Há gente que até já tem o saco feito", dizem. Estes três sexagenários são, porém, homens optimistas. "Vai ser uma festa. A festa da independência. Vai tudo votar em paz. E agora está aí a tropa portuguesa que defende o povo. Vai ser uma festa", assegura o senhor Lucas, enquanto, tal como os seus dois amigos, olha para os caminhos que trepam a montanha e que conhecem como a palma das suas mãos.

Como diz o senhor Marcelino, "não vai acontecer nada, mas pode acontecer". Por isso os seus olhos voltam a virar-se para a montanha amiga feita de mil verdes.


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