Caderno Eleitoral
Outra vez a olhar para a montanha
Por Luciano Alvarez
Sábado, 25 de Agosto de 2001
O bairro de Becora, conhecido como o "inferno"
nos dias da ocupação indonésia por ali
se verificarem conflitos frequentes entre os independentistas
e as forças ocupantes, vive, como toda a cidade de
Díli, dias de tranquilidade. Um bairro popular, de
gente muito pobre e desempregada, cuja maioria vive ainda
em casas com telhados e paredes mal amanhadas. Ali o dinheiro
mal chega para a comida, quanto mais para recuperar as casas
destruídas nos dias da brasa de 1999. Por isso as paredes
e telhados são ainda chapas de zinco, "coladas"
com restos de madeiras ou de cartão, com toda a violência
da destruição de Setembro de 1999 ainda à
vista.
Becora fica no sopé da montanha. Uma
montanha que substituía as casas quando as coisas aqueciam.
Uma montanha amiga e protectora que salvou muitas vidas das
balas inimigas. Hoje, com eleições à
porta, surgem as más recordações do passado
e o povo volta a olhar para a montanha que fica às
portas de sua casa. "Aqui todos vão votar no dia
30, mas se houver problemas as mulheres e as crianças
vão logo para as montanhas", diz Marcelino Caetano,
um homem de 66 anos que ali vive desde sempre.
A conversa lançada pelo jornalista solta-lhe
de imediato a língua. Fala sem parar. Conta histórias
dos tempos dos portugueses, da sua passagem pela tropa como
"mecânico de primeira". Da invasão
indonésia, dos "tempos da morte", da resistência,
da "destruição de 1999", quando teve
de fugir para a região de Dare com a família.
Difícil é fazê-lo parar.
"Isto hoje é tudo melhor. Não
há dinheiro, mas é melhor. Timor agora é
um país sem problemas de guerra", afirma quando
a conversa chega ao presente. Por isso, garante que no dia
30 vai votar "nem que seja a rastejar." E assegura
não ter dúvidas que "desta vez não
vai haver problema". "O problema" - afinal
sempre havia um problema - "é se os que ganharem
e perderem começam com a coisa". E a "coisa",
para o senhor Marcelino, é "vir um provocar o
outro, e depois mais outro, e mais outro e a coisa começa".
"Depois vêm grupos que por aí andam para
roubar, e tropa e mais os que não querem paz e pronto."
Coisa que Marcelino não acredita que
aconteça. Bem, "talvez não aconteça".
Ou melhor: "Não vai acontecer, mas pode acontecer."
Nesta altura, a conversa com o jornalista já é
repartida com mais dois amigos de Marcelino. Também
têm muitas história para contar, algumas perguntas
sobre Portugal para fazer e mais certezas que Marcelino sobre
o presente. "Ainda anda muito ódio por aí.
Muita vingança prometida e cada vez mais bandidos",
diz o senhor José. "O povinho está feliz
com a independência mas ainda tem muito medo",
acrescenta o senhor Lucas.
Nenhum deles tem dúvidas de que o povo
voltará para as montanhas caso "a coisa",
como diz o senhor Marcelino, aconteça. "Há
gente que até já tem o saco feito", dizem.
Estes três sexagenários são, porém,
homens optimistas. "Vai ser uma festa. A festa da independência.
Vai tudo votar em paz. E agora está aí a tropa
portuguesa que defende o povo. Vai ser uma festa", assegura
o senhor Lucas, enquanto, tal como os seus dois amigos, olha
para os caminhos que trepam a montanha e que conhecem como
a palma das suas mãos.
Como diz o senhor Marcelino, "não
vai acontecer nada, mas pode acontecer". Por isso os
seus olhos voltam a virar-se para a montanha amiga feita de
mil verdes.
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