.O 1º NÚMERO DOS "CAHIERS"

Foi na manhã de um de Abril de 1951, no número 146 dos Campos Elíseos, em Paris. O ritmo era frenético. O primeiro número de uma revista amarela acabava de sair do prelo.

.O QUE SIGNIFICAM OS "CAHIERS" PARA ...

- João Mário Grilo
- Eduardo Prado Coelho
- Edgar Pêra

   
   
   
   
   
 
   
   

Cannes celebra 50 anos dos "Cahiers du Cinéma"
A Bíblia amarela do cinema
Marta Fernandes
Segunda-feira, 14 de Maio de 2001


São poucas as revistas sobre cinema que se podem orgulhar de chegar à terna idade dos 50 anos. Contam-se mesmo pelos dedos de uma única mão. E entre as que merecem algum destaque e alguma atenção, só os "Cahiers du Cinéma" e a "Positif" sopraram as velas de aniversário por cumprirem meio século. O Festival de Cannes não esqueceu a efeméride e dedicou uma exposição especial aos Cadernos amarelos, que festejaram no mês passado o seu quinquagésimo aniversário.

Falar da História do Cinema sem falar dos "Cahiers du Cinéma" é ignorar a revista que transformou a maneira de encarar, de fazer e de pensar a Sétima Arte. Mas nem tudo foram rosas no longo percurso desta revista, que comemorou 50 anos de vida no seu número 556 de Abril de 2001. Os célebres cadernos amarelos passaram por várias etapas muito distintas, sobreviveram a tempestades, a motins no próprio barco. Mas uma coisa é certa: mantiveram-se sempre como uma publicação de referência.

Os criadores dos "Cahiers" quiseram, desde o primeiro número, em Abril de 1951, elevar o cinema a uma arte. Feita por críticos, que mais tarde se tornaram quase todos cineastas (à excepção de André Bazin, considerado como o único crítico que o foi verdadeiramente), a revista destacou-se sobretudo pela importância que teve numa nova atitude em relação ao cinema de autor - a chamada política dos autores, teorizada pela primeira vez por François Truffaut - e na "Nouvelle Vague" do cinema francês.

A política dos autores

A política dos autores nasceu oficialmente em Fevereiro de 1955, num texto de Truffaut sobre o filme "Ali Babá e os Quarenta Ladrões", de Arthur Lubin. O artigo intitulava-se, precisamente "Ali Babá e a Política dos Autores". O que caracterizava esta nova atitude é que os filmes deixavam de valer pelo seu conteúdo e passavam a valer sobretudo pela sua encenação. Passava a haver uma proximidade, uma intimidade com os autores. Já não havia filmes menores, a aproximação não se fazia filme a filme, mas olhava-se para o conjunto da obra e via-se o autor que estava por detrás dela.

Com a política dos autores recuperaram-se muitos cineastas negligenciados, que foram redescobertos a partir do olhar dos críticos. Fez-se a reabilitação, por exemplo, do cinema americano - e o reconhecimento actual de nomes como Charles Chaplin, Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Fritz Lang e Nicholas Ray muito fica a dever aos cadernos amarelos. Chabrol é o primeiro a aderir à política teorizada por Truffaut, mas nem todos os críticos dos "Cahiers" a aceitaram de imediato. A política dos autores teve os seus defensores e os seus adversários.

Dizia Jean-Luc Godard sobre Hitchcock e a política dos autores: "Se hoje todos conhecem o 'Hitchcock presents' é graças a nós. Pegámos no nome do autor cá em baixo e pusemo-lo lá em cima. E dissemos: 'É ele que faz os filmes'". O mesmo Godard disse sobre Chaplin. "Diz-se hoje Chaplin como se diz da Vinci. Ou melhor diz-se Charlot como se diz Leonardo. E não há mais bela homenagem a prestar a um artista de cinema".

Truffaut foi o primeiro a dar um nome a esta nova atitude, mas ela já transparecia em números anteriores da revista - em artigos, por exemplo, de André Bazin. Na crítica a "The Magnificent Ambersons", de Orson Welles, Bazin escreveu que "Welles é decididamente um dos cinco ou seis autores do mundo dignos deste nome, um dos cinco ou seis que tem dentro dele uma visão do mundo".

Pensar cinema, fazer cinema

Mas os críticos dos "Cahiers" não se ficaram por aí. Transformaram-se eles próprios em cineastas e deram origem, na transição dos anos 50 para os anos 60, à "Nouvelle Vague" do cinema francês. Como o seu nome indica, tratava-se de uma onda de renovação que pretendia marcar um corte completo com a ordem instituída no cinema e na realização.

Estes críticos-cineastas conseguem realizar as suas primeiras obras com orçamentos muito baixos e fazem uma autêntica revolução no cinema francês. O primeiro é, mais uma vez, Truffaut, com "Os 400 golpes". "O cinema francês volta a ser possível", escreve Godard no número 92 dos "Cahiers du Cinéma". "Com 'Os 400 Golpes', François Truffaut entra no cinema francês moderno como no colégio das nossas infâncias. São os nossos filmes que vão a Cannes ["Os 400 golpes" foi apresentado em 1959] provar que a França tem uma cara bonita, cinematograficamente falando". Nos anos seguintes, Jean-Luc Godard realiza "O Acossado" ("À bout de souffle") e Claude Chabrol "Le Beau Serge".

Para Godard e os seus cúmplices, os "jovens turcos" - François Truffaut, Jacques Rivette, Claude Chabrol e Eric Rohmer -, esta passagem de crítico para cineasta era evidente. "Nos 'Cahiers', todos considerávamos que éramos futuros realizadores", declarava Godard, entrevistado no número 138 dos "Cahiers", publicado em Dezembro de 1962 e dedicado à "Nouvelle Vague". "Frequentar os cineclubes e a Cinemateca já era pensar cinema e pensar no cinema. Escrever era já fazer cinema, porque entre escrever e filmar há uma diferença quantitativa, não qualitativa. Enquanto crítico, já me considerava cineasta. Hoje, continuo a considerar-me sempre crítico e, num certo sentido, sou-o ainda mais do que dantes. Em vez de fazer crítica, faço filmes, mas para neles introduzir a dimensão crítica. Faço ensaios sob a forma de romances ou romances sob a forma de ensaios. Só que os filmo, em vez de os escrever. A meu ver, há uma grande continuidade entre todas as formas de expressão. Todas elas fazem um bloco. A questão é sabermos pegar nesse bloco pelo lado que melhor nos convém. Nós pensávamos cinema e, a certa altura, sentimos a necessidade de aprofundar esse pensamento".

Nesse mesmo número dos "Cahiers", para além de entrevistas a Godard, Truffaut e Chabrol, é apresentado um "dicionário" de 162 novos cineastas - ou seja, dos cineastas da Nouvelle Vague" -, em que são citados os nomes de Alain Resnais, Gérard Oury (que vai ser homenageado em Cannes este ano), Jean Rouch, Roger Vadim.

Uma leitura política

Os acontecimentos de Maio de 68 vão também marcar a revista, que depressa assume um lado político mais vincado, com uma forte tendência para um esquerdismo militante. Anos depois, esse lado político e a própria política dos autores esmorece e dá lugar a uma preocupação com o lugar do espectador, do ponto de vista psicanalítico de Jacques Lacan.

Mas, no fundo, o culto do autor permaneceu sempre na revista, que continuou a dedicar números especiais ao cinema italiano (Pasolini por exemplo), ao cinema japonês (nº 224, em Outubro de 1970), ao cinema espanhol (Buñuel aparece com frequência nos cadernos) e também ao cinema português. "Francisca", de Manoel de Oliveira, é capa da revista nº 330 e é apresentado , em 1981, no Festival de Cannes. O mesmo Oliveira foi sempre uma presença nos cadernos amarelos e aparece agora, no número comemorativo dos 50 anos, a comentar "Gertrud", de Carl Dreyer.

A entrada do "Monde"

Durante estes 50 anos, muitas vezes a revista foi procurar noutros lugares elementos de reflexão (estruturalismo, teoria política, psicanálise, filosofia). Não é de surpreender portanto que, nas páginas dos "Cahiers", seja fácil encontrar entrevistas a filósofos como Michel Foucault, Roland Barthes e Jacques Derrida, antropólogos como Lévi-Strauss ou sociólogos como Edgar Morin - que, diga-se de passagem, foi um dos "novos cineastas" citados no dicionário de 1962, sem nunca ter passado, no entanto, à realização...

Em 1998, os "Cahiers" viram a sua existência ameaçada e estiveram quase a encerrar mas, a 15 de Outubro desse ano, o diário "Le Monde" tomou as rédeas da revista, renovando-lhe a forma. No entanto, o grupo "Le Monde" prometeu não trair a exigência da revista e o papel que ela sempre teve na cinematografia.

Foi Gilles Deleuze que o disse: "A história dos Cadernos permite-nos compreender, através do cinema, os caminhos do pensamento francês contemporâneo".

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