Cannes celebra 50 anos dos "Cahiers
du Cinéma"
A Bíblia amarela do cinema
Marta Fernandes
Segunda-feira, 14 de Maio de 2001
São poucas as revistas sobre cinema que se podem orgulhar
de chegar à terna idade dos 50 anos. Contam-se mesmo pelos
dedos de uma única mão. E entre as que merecem algum destaque
e alguma atenção, só os "Cahiers du Cinéma" e a "Positif"
sopraram as velas de aniversário por cumprirem meio século.
O Festival de Cannes não esqueceu a efeméride e dedicou
uma exposição especial aos Cadernos amarelos, que festejaram
no mês passado o seu quinquagésimo aniversário.
Falar da História do Cinema
sem falar dos "Cahiers du Cinéma" é ignorar a revista que
transformou a maneira de encarar, de fazer e de pensar a Sétima
Arte. Mas nem tudo foram rosas no longo percurso desta revista,
que comemorou 50 anos de vida no seu número 556 de Abril de
2001. Os célebres cadernos amarelos passaram por várias etapas
muito distintas, sobreviveram a tempestades, a motins no próprio
barco. Mas uma coisa é certa: mantiveram-se sempre como uma
publicação de referência.
Os criadores dos "Cahiers"
quiseram, desde o primeiro número, em Abril de 1951, elevar
o cinema a uma arte. Feita por críticos, que mais tarde se
tornaram quase todos cineastas (à excepção de André Bazin,
considerado como o único crítico que o foi verdadeiramente),
a revista destacou-se sobretudo pela importância que teve
numa nova atitude em relação ao cinema de autor - a chamada
política dos autores, teorizada pela primeira vez por François
Truffaut - e na "Nouvelle Vague" do cinema francês.
A política dos autores
A política dos autores
nasceu oficialmente em Fevereiro de 1955, num texto de Truffaut
sobre o filme "Ali Babá e os Quarenta Ladrões", de Arthur
Lubin. O artigo intitulava-se, precisamente "Ali Babá e a
Política dos Autores". O que caracterizava esta nova atitude
é que os filmes deixavam de valer pelo seu conteúdo e passavam
a valer sobretudo pela sua encenação. Passava a haver uma
proximidade, uma intimidade com os autores. Já não havia filmes
menores, a aproximação não se fazia filme a filme, mas olhava-se
para o conjunto da obra e via-se o autor que estava por detrás
dela.
Com a política dos autores
recuperaram-se muitos cineastas negligenciados, que foram
redescobertos a partir do olhar dos críticos. Fez-se a reabilitação,
por exemplo, do cinema americano - e o reconhecimento actual
de nomes como Charles Chaplin, Alfred Hitchcock, Howard Hawks,
Fritz Lang e Nicholas Ray muito fica a dever aos cadernos
amarelos. Chabrol é o primeiro a aderir à política teorizada
por Truffaut, mas nem todos os críticos dos "Cahiers" a aceitaram
de imediato. A política dos autores teve os seus defensores
e os seus adversários.
Dizia Jean-Luc Godard sobre
Hitchcock e a política dos autores: "Se hoje todos conhecem
o 'Hitchcock presents' é graças a nós. Pegámos no nome do
autor cá em baixo e pusemo-lo lá em cima. E dissemos: 'É ele
que faz os filmes'". O mesmo Godard disse sobre Chaplin. "Diz-se
hoje Chaplin como se diz da Vinci. Ou melhor diz-se Charlot
como se diz Leonardo. E não há mais bela homenagem a prestar
a um artista de cinema".
Truffaut foi o primeiro
a dar um nome a esta nova atitude, mas ela já transparecia
em números anteriores da revista - em artigos, por exemplo,
de André Bazin. Na crítica a "The Magnificent Ambersons",
de Orson Welles, Bazin escreveu que "Welles é decididamente
um dos cinco ou seis autores do mundo dignos deste nome, um
dos cinco ou seis que tem dentro dele uma visão do mundo".
Pensar cinema, fazer cinema
Mas os críticos dos "Cahiers"
não se ficaram por aí. Transformaram-se eles próprios em cineastas
e deram origem, na transição dos anos 50 para os anos 60,
à "Nouvelle Vague" do cinema francês. Como o seu nome indica,
tratava-se de uma onda de renovação que pretendia marcar um
corte completo com a ordem instituída no cinema e na realização.
Estes críticos-cineastas
conseguem realizar as suas primeiras obras com orçamentos
muito baixos e fazem uma autêntica revolução no cinema francês.
O primeiro é, mais uma vez, Truffaut, com "Os 400 golpes".
"O cinema francês volta a ser possível", escreve Godard no
número 92 dos "Cahiers du Cinéma". "Com 'Os 400 Golpes', François
Truffaut entra no cinema francês moderno como no colégio das
nossas infâncias. São os nossos filmes que vão a Cannes ["Os
400 golpes" foi apresentado em 1959] provar que a França tem
uma cara bonita, cinematograficamente falando". Nos anos seguintes,
Jean-Luc Godard realiza "O Acossado" ("À bout de souffle")
e Claude Chabrol "Le Beau Serge".
Para Godard e os seus cúmplices,
os "jovens turcos" - François Truffaut, Jacques Rivette, Claude
Chabrol e Eric Rohmer -, esta passagem de crítico para cineasta
era evidente. "Nos 'Cahiers', todos considerávamos que éramos
futuros realizadores", declarava Godard, entrevistado no número
138 dos "Cahiers", publicado em Dezembro de 1962 e dedicado
à "Nouvelle Vague". "Frequentar os cineclubes e a Cinemateca
já era pensar cinema e pensar no cinema. Escrever era já fazer
cinema, porque entre escrever e filmar há uma diferença quantitativa,
não qualitativa. Enquanto crítico, já me considerava cineasta.
Hoje, continuo a considerar-me sempre crítico e, num certo
sentido, sou-o ainda mais do que dantes. Em vez de fazer crítica,
faço filmes, mas para neles introduzir a dimensão crítica.
Faço ensaios sob a forma de romances ou romances sob a forma
de ensaios. Só que os filmo, em vez de os escrever. A meu
ver, há uma grande continuidade entre todas as formas de expressão.
Todas elas fazem um bloco. A questão é sabermos pegar nesse
bloco pelo lado que melhor nos convém. Nós pensávamos cinema
e, a certa altura, sentimos a necessidade de aprofundar esse
pensamento".
Nesse mesmo número dos
"Cahiers", para além de entrevistas a Godard, Truffaut e Chabrol,
é apresentado um "dicionário" de 162 novos cineastas - ou
seja, dos cineastas da Nouvelle Vague" -, em que são citados
os nomes de Alain Resnais, Gérard Oury (que vai ser homenageado
em Cannes este ano), Jean Rouch, Roger Vadim.
Uma leitura política
Os acontecimentos de Maio
de 68 vão também marcar a revista, que depressa assume um
lado político mais vincado, com uma forte tendência para um
esquerdismo militante. Anos depois, esse lado político e a
própria política dos autores esmorece e dá lugar a uma preocupação
com o lugar do espectador, do ponto de vista psicanalítico
de Jacques Lacan.
Mas, no fundo, o culto
do autor permaneceu sempre na revista, que continuou a dedicar
números especiais ao cinema italiano (Pasolini por exemplo),
ao cinema japonês (nº 224, em Outubro de 1970), ao cinema
espanhol (Buñuel aparece com frequência nos cadernos) e também
ao cinema português. "Francisca", de Manoel de Oliveira, é
capa da revista nº 330 e é apresentado , em 1981, no Festival
de Cannes. O mesmo Oliveira foi sempre uma presença nos cadernos
amarelos e aparece agora, no número comemorativo dos 50 anos,
a comentar "Gertrud", de Carl Dreyer.
A entrada do "Monde"
Durante estes 50 anos,
muitas vezes a revista foi procurar noutros lugares elementos
de reflexão (estruturalismo, teoria política, psicanálise,
filosofia). Não é de surpreender portanto que, nas páginas
dos "Cahiers", seja fácil encontrar entrevistas a filósofos
como Michel Foucault, Roland Barthes e Jacques Derrida, antropólogos
como Lévi-Strauss ou sociólogos como Edgar Morin - que, diga-se
de passagem, foi um dos "novos cineastas" citados no dicionário
de 1962, sem nunca ter passado, no entanto, à realização...
Em 1998, os "Cahiers" viram
a sua existência ameaçada e estiveram quase a encerrar mas,
a 15 de Outubro desse ano, o diário "Le Monde" tomou as rédeas
da revista, renovando-lhe a forma. No entanto, o grupo "Le
Monde" prometeu não trair a exigência da revista e o papel
que ela sempre teve na cinematografia.
Foi Gilles Deleuze que
o disse: "A história dos Cadernos permite-nos compreender,
através do cinema, os caminhos do pensamento francês contemporâneo".


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