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Na encosta da grande falésia
Por Vanessa Rato
“Retrato do Artista Quando Jovem”
acompanha o processo de crescimento e formação
de Stephan Dedalus, um artista por nascer na Irlanda do fim
do século XIX. É o princípio da grande
falésia a que James Joyce subiria com “Ulisses”
e “Finnegans Wake”. O momento em que se olha ao
espelho antes de empreender a escalada.
Disse T. S. Eliot que à medida que um
artista vai avançando pela vida e trabalhando, em vez
de se modificar progressivamente, ele vai na verdade revelando-se,
passo a passo, etapa a etapa. Assim, a obra que vai deixando
atrás de si “nem deve ser mais, nem deve ser
menos do que ele necessita de realizar em cada momento definido
da sua revelação.”
“Retrato do Artista Quando Jovem”,
a terceira obra de James Joyce, publicada em 1916, é
também o primeiro volante do tríptico a que
pertencem ainda “Ulisses” e “Finnegans Wake”.
Verdadeiro épico – numa versão
paródica de “Odisseia” escrita ao longo
de sete anos (1914-1921) entre três cidades distintas
(Trieste, Zurique e Paris) –, “Ulisses”,
editado pela primeira vez em Paris, em 1922, reflecte todos
os conflitos do modernismo e é o relato de um único
dia passado em Dublin, o 16 de Junho de 1904 – “um
dia muito semelhante a qualquer outro, que nenhum acontecimento
importante marcou”, escreveria Stuart Guilbert, que
reviu a obra antes da sua publicação em França.
Mas Joyce traduziu esse dia em 800 páginas
em que se integram mais de cem estilos distintos, do poema
ao drama, do ensaio à farsa, da reportagem ao sermão,
da ópera ao tratado.
Enquanto nos circuitos intelectuais europeus
Joyce era aclamado como o maior escritor do momento, no mundo
anglo-saxónico, de que o escritor se exilara definitivamente
em 1904, a obra era queimada pelas autoridades alfandegárias.
Por entre a conturbação, apenas
dois anos depois Joyce partia para uma última grande
aventura literária: a escrita de “Finnegans Wake”,
que começa a surgir na “The Atlantic Review”,
com o título provisório de “Work in Progress”,
para ter, finalmente, edição em livro em 1939.
“Não é difícil
ser-se audacioso quando se é jovem. Mas a audácia
mais bela é a do fim da vida. Admiro-a em Joyce, como
a admiro em Mallarmé, em Beethoven e em alguns raríssimos
artistas cuja obra termina numa falésia e que ao futuro
apresentam a mais abrupta face do seu génio, sem nunca
deixar de conhecer a insensível encosta por onde atingiram
pacientemente essa desconcertante altitude”, diria na
altura André Gide.
Pode estabelecer-se o início dessa
encosta como sendo “Retrato do Artista Quando Jovem”,
onde são evidentes as coincidências biográficas
com a vida do escritor. Como se com o livro Joyce tivesse
decidido olhar-se ao espelho. No reflexo surge Sephen Dedalus,
um artista que ainda não o é na Irlanda do final
do século XIX e que vai contar a sua história.
“Stephen Dedalus, Classe elementar,
Colégio de Clongowes Wood, Sallins, Condado de Kildare,
Irlanda, Europa, Mundo, Universo”, escreve na capa do
seu compêndio do primeiro ano de estudos. Haveria, mais
tarde, de rever a sua posição, durante uma viagem
com o pai: “Eu sou Stephen Dedalus. Caminho ao lado
do meu pai cujo nome é Simão Dedalus. Estamos
em Cork, na Irlanda. Cork é uma cidade. Estamos alojados
no hotel Vitória. Vitória, Stephen e Simão.
Simão, Stephen e Vitória. Nomes.”
A seu tempo, numa adolescência confusa,
chegará a descoberta da sexualidade, num quarto quente
da labiríntica Dublin, onde há vielas sórdidas,
estreitas e imundas, onde prostitutas de robes cor-de-rosa
cheiram a perfume e têm mãos titilantes.
Chegará também a tortura da
noção do pecado – uma coisa inumana e
serpentesca “engordando com a baba da luxúria”.
E a resolução do apelo da fé. Mas também
o desespero do seu questionamento. Até que uma voz
interior aponta na arte o apelo de liberdade que a vida lhe
dirigia desde há muito.
Numa praia onde uma rapariga levanta delicadamente
e sem pruridos a saia para deixar molhar os pés, Stephen
Dedalus haverá de descobrir que a sua vocação
é estar “rente ao coração selvagem
da vida” e poder esperar “apertar nos braços
a beleza que ainda não veio ao mundo”.
É aqui que o grito do falcão
prestes a levantar voo se formará na sua garganta,
seca, apertada e dorida pelo impacto da revelação
que já não pode ignorar. O infinito abre-se
a seus pés. “Não continuarei a servir
aquilo em que já não acredito, chame-se meu
lar, minha pátria ou minha religião. E tratarei
de exprimir-me em algum modo de vida ou de arte tão
livremente quanto possa, tão plenamente quanto possa,
usando para minha defesa as únicas armas que me permito
usar: silêncio, exílio e astúcia.”
Com “Retrato”, Joyce oferece uma
obra que cresce com o seu protagonista. No fim do livro, Stephen
parte em direcção a Paris – como o fez
Joyce. “Ulisses” começa essencialmente
onde “Retrato” acaba, mas com Stephen já
de regresso a Dublin.
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