Um concerto de seres livres
Na obra de Agustina Bessa-Luís, “Fanny Owen” não é um livro qualquer. “É um romance conduzido até mim duma ideia que não me ocorreu a mim. Foi o caso de me terem pedido os diálogos para um filme cujo assunto seria Fanny Owen”, escreve a romancista no prefácio. A ideia foi de Manoel de Oliveira que, a partir de “Fanny Owen”, realizará uma obraprima: “Francisca”.

Agustina está consciente do desafio: “Para escrever os diálogos pareceu-me necessário e útil trazer Camilo Castelo Branco à luz da nossa experiência humana sem o traduzir na opinião de escritor que é a minha.” Por isso, acrescenta, usou a colagem. “E quase todas as falas são as autênticas, que ele escreveu, em novelas, nos dispersos e nas folhas em que anotava os seus pensamentos.”

É sabido: Agustina tem uma devoção particular por Camilo. A sua escrita, senão mesmo a sua concepção romanesca, deriva da camiliana, embora como romancista não seja romântica. Muito longe disso!

Quem (e como) era Fanny Owen? À época em que Camilo a conheceu, “lembrava- se só dos olhos muito afastados, os bandós dum castanho saibrento, muito claro”. De lábios muito finos, numa fotografia que chegou até nós (cf., “Dicionário de Camilo Castelo Branco”, ed., Caminho, de Alexandre Cabral), deixa cair a mão sobre o rosto. Olheiras fundas, o que não é de estranhar: Fanny morreu de tuberculose em 1854 com apenas 24 anos, depois de uma trágica existência e dum casamento atribulado com José Augusto Pinto de Magalhães, após ter sido raptada por ele. E corresponde- se com Camilo.

É este triângulo amoroso, e sobretudo a relação de amizade/asco entre Camilo e José Augusto, o núcleo central de “Fanny Owen”. O pano de fundo? O Porto oitocentista, decadente e burguês, onde os morgados do Douro desaguavam para escapar ao provincianismo de Trás-os-Montes, as sequelas da corte de Carlota Joaquina no Brasil (de onde emerge a burguesa D. Maria Rita, mãe de Fanny) e Hugh Owen, um oficial britânico, saído de uma série da BBC.

Do Paraíso para o inferno do Lodeiro Depois de se aproximar da irmã de Maria, José Augusto apaixona-se visceralmente por Fanny. Num gesto à Camilo (!), rapta-a e fecha-a a sete chaves na sua Quinta do Loudeiro. Fanny definhará no inferno de Santa Cruz do Bouro, ela que saíra do paraíso. A relação com José Augusto torna-se insuportável. Fanny, à beira da morte, resume-a, lucidamente: “Não te pedi diploma de marido sofrível. São coisas como as que te digo agora que destroem o que chamas ‘o santo lirismo do teu coração’.” José Augusto também morrerá, porque ingerirá uma dose fatal de ópio.

O “granito” de que é feito “Fanny Owen” é a relação entre Camilo e José Augusto. Como Agustina explicou a Artur Portela (“Agustina por Agustina”, ed., Dom Quixote): “Um, porque é fidalgo de província, boa figura, homem brilhante, o outro, que é o génio, talento e que, de certa maneira, se completa no outro. E aqueles dois homens, que mutuamente se invejam e se fascinam, são distraídos, involuntária e obstinadamente pela mulher.” Aqui entra Fanny — e, em menor grau, Maria, a irmã mais nova.

É também aqui que entra o talento de Agustina Bessa- Luís. Um talento datado... Em “Jóia de Família”, a romancista interpela os seus leitores e sugere que “o romance mudou muito”. Quatro linhas à frentes aduz: “Já não era hoje possível escrever ‘Os Irmãos Karamazov’, de Dostoievski, ‘Ana Karenina’, de Tolstoi, e ‘A Metamorfose’, de Kafka.” Pois bem: é duvidoso que Agustina pudesse, hoje, escrever “Fanny Owen”.

Isso não retira exuberância ao romance. Os diálogos, sobre o amor, a alma, a morte, a amizade, a tragédia, o bem e o mal (os temas românticos por excelência), são deliciosos, próximos de um ciclo muito próprio da escritora — o dos aforismos. E Agustina sabe que, entre os seus leitores, tem muitos desta casta... “

— O que eu sinto é o perfeito amor, Camilo.
— Além da perfeição está o fastio. Ou então, aperfeiçoado, acaba mesmo. Não cases. Vais matá-la.
— Matá-la? Se eu a amo!
— Amas com orgulho. Amas o luxo de amar, mais nada. O amor de Fanny e a amizade dum literato como eu. Não pode ir mais longe a ambição do homem rico aos vinte e cinco anos. (...)
— Sabes quem eu sou, Camilo? Sou capaz de te correr a chibatadas agora mesmo.
— Sei quem tu és. És... um desgraçado.”

É um diálogo entre José Augusto e Camilo. Porém, o diálogo maior de “Fanny Owen” é o que Agustina mantém com Camilo. A permanente tensão (mais do que dúvida) que o leitor sente quando lê o romance é a de saber que voz é que está a ler: se a de Bessa-Luís, se a de Camilo. Ele era romântico; ela sabe que “o romantismo foi um surrealismo com menos laboratório”.

Um e outro, cada qual à sua maneira, cantam os versos de Hölderlin: “Que seria deste mundo, se não fosse um concerto de seres livres.”