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Excerto
Os Morgados
O rio Douro não teve cantores. Teve-os o Mondego e
o Tejo também. Mas, para além das cristas do
Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia
o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia
o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá
pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira. E
o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira
de neve que cobria os barrancos de Sabroso. O rio Douro ficou
banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz
pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins,
que são sempre lamurientos e que à beira de
água lavam os pés e os pecados. E, no entanto,
trata-se de um rio majestoso como não há outro.
Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as
margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome
dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à
má cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra
como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada.
Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante
tê-lo-ia amado e preferido; como preferiu os estaleiros
incandescentes de Veneza e os tumulos abertos das arenas de
Arles, para descrever o inferno. Por cá, são
brandas as liras; com o aguilhão da fome, às
vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma
bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem
senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias
são raras, as musas são mimosas e não
ardentes.
Porém havia nas margens
do Douro uns nativos especiais que se alimentavam de bacalhau
cozido com ovos à ceia, refeição com
tradições de mesmice gastronómica. Ás
nove da noite, e à luz metálica dos gasómetros
ou das velas em castiçais de dois braços, sentava-se
à mesa o lavrador do Douro, homem no geral de génio
ponderado e de trato soberbo. Tinha quatro filhas e dois rapazes,
um deles morgado, entroncado e bebedor; antes dos vinte anos
ficava orfão e deixava a herança nos botequins
da Régua onde se jogava o monte com obstinação
que, de não ser viciosa, seria espartana. A Régua,
em 1840, era um pouco St. Louis do Missouri, só que
com menos europeus. Havia ingleses, é certo; mas para
cá da Mancha um inglês sofre uma rebaixa de cinquenta
por cento. Para chegar onde quero chegar direi que em 1845,
nos altos de Baião e num lugar chamado Santa Cruz do
Douro, vivia um desses morgados bizarros, que cumprem o seu
destino seduzindo uma costureira, casando com uma prima e
endividando-se quase sem sair de casa - a comer e a administrar
mal as terras. Mas José Augusto Pinto de Magalhães,
o jovem proprietário da quinta do Lodeiro, tinha uma
particularidade mais ruinosa: fazia versos. Os pais tinham
morrido, o meio-irmão casara com uma senhora prendada
e de boas famílias. Em vez de se limitar aos serões
de Mesão-Frio e Amarante, José Augusto desceu
sobre o Porto, onde triunfava uma boémia inteligente,
byroniana, com mais coletes do que ideias, com mais prosápia
do que novidade. Uma boémia igual a outra qualquer.
Desiludido com essa turba de românticos quase todos
picados de donjuanismo capaz de sacrificar-se a um dote do
Pará ou dum bacalhoeiro da rua Nova de São João,
José Augusto caiu na capital, onde teve o seu baptismo
de salão: quer dizer que o acharam tolo e não
pôde convencer ninguém de que não o era.
Foi lá que encontrou Camilo Castelo Branco, um moço
com talento, bexigas e má memória. A má
memória é essencial para escrever romances e
para os poder viver; na vida e nos romances, tudo se repete.
Quando a boa memória existe em abundância tudo
resulta em fracasso; porque o génio não convence
se não estiver aturdido com certa dureza de espírito
que não dá conta de quanto a fantasia é
coisa venerável pela velhice que testemunha. Enfim,
Camilo encontrou José Augusto e não simpatizou
com ele. «Olá - pensou. - Já conheço
este exemplar. Um provinciano chapado.» Mas não
era, viu-se mais tarde. Camilo gostava cias pessoas que sabem
chorar. Debaixo das bravatas irónicas e do dogma do
desprezo encontram-se às vezes almas tão vulneráveis
que um diabo encartado não sabe que fazer delas. Camilo
não era um diabo encartado; tinha poucos anos de ciências
médico-cirurgicas, menos ainda de direito e outro tanto
de teologia. As suas relações com Deus eram
mais cerimoniosas do que íntimas, como aconteceu com
Voltaire. Só que a sua indigestão de cepticismo
se mudou com o tempo num delírio embaraçoso,
porque tinha não sei quê de desemprego do coração;
uma febrfcola triste, de quem mata por despeito e por vingança
ama.
José Augusto, quando
exibia o seu completo desdém pelas mulheres, era sincero.
Conhecera pelo menos uma que o desiludira - a mãe.
Morrera e deixara-o na flor da vida. Não há
maior desleixo do coração materno. Quando se
consolida a obscura missão do afecto e todos os perigos
estão cumpridos, devassados, traídos, essa morte
duma mãe parece escândalo, e é-o realmente.
Um rapaz de dezoito anos, musical, com muitas graças
de cultura e garbo &pessoa, rei de sua casa, habituado
ao regaço das mulheres que o criaram, primogénito
como Esaú e preferido como Jacob, não se deixa
iludir pela morte. A mãe não morre, para ele
- abandona-o. Daí parte o seu sentimento irritado e
de aparência fútil contra as coisas que lhe sugerem
e as amantes que se lhe oferecem. Camilo, que era thais cordial
com as oportunidades, mais egoísta talvez, não
sente simpatia por José Augusto. Pode ser que pressinta
nele um atractivo profundo, uma raça que se não
define senão pela natureza luciferina: o orgulho.
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