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                   Quarta-feira, 28 de Agosto 
                    de 2002 
                    O que é um homem? Se isto é 
                    um homem  
                    Por Teresa de Sousa 
                   
                  
                    A obra imortal de Primo Levi, um judeu italiano 
                      que sobreviveu a Auschwitz para escrever o mais humano e 
                      comovente testemunho do Holocusto. 
                   
                  Num sábado, dia 11 de Abril de 
                    1987, por volta das 10 horas da manhã, a porteira de 
                    um sólido edifício cinzento do século 
                    XIX situado no Corso Rei Umberto de Turim tocou à porta 
                    do 3º andar para, como todos os dias, entregar o correio. 
                    Primo Levi abriu-lhe a porta, sorriu, recebeu o correio, agradeceu 
                    e reentrou. Poucos minutos depois o seu corpo estatelava-se 
                    no fundo da escada, ao lado do elevador. Morreu instantaneamente, 
                    como revelou a autópsia, que não detectou no 
                    seu corpo qualquer sinal de violência.  
                  Suicídio foi a primeira explicação 
                    oficial que quase todos se apressaram a aceitar.  
                  Levi desistia de ser "o bem educado 
                    cicerone do inferno." "Até ao dia da sua 
                    morte, eu estava convencido de que ele era a pessoa mais serena 
                    do mundo", disse o filósofo italiano e seu amigo, 
                    Norberto Bobbio.  
                  O inesperado suicídio de Levi 
                    começava a parecer agora tão previsível. 
                    Concluído a tarefa de testemunhar, que o prendera à 
                    vida desde esse dia já longínquo de Janeiro 
                    de 1945 em que ganhara a batalha impossível da sobrevivência 
                    contra Auschwitz, a memória tornara-se-lhe insuportável. 
                     
                  Em Novembro de 1962, Levi tinha escrito: 
                    "Há um sonho pleno de horror que não deixa 
                    de me visitar (...). É um sonho dentro de um sonho. 
                    Varia nos detalhes mas não na substância. Posso 
                    estar sentado à volta de uma mesa com a minha família 
                    ou com amigos, ou no trabalho, ou num campo verde. Em suma, 
                    num ambiente pacífico e descontraído, sem qualquer 
                    tensão ou aflição aparente; e, no entanto, 
                    sinto uma profunda e subtil angústia, a sensação 
                    definitiva de uma ameaça pendente. E, de facto, à 
                    medida que o sonho continua, devagar ou brutalmente, de cada 
                    vez de uma forma diferente, tudo se desintegra à minha 
                    volta, o cenário, as paredes, as pessoas, enquanto 
                    a angústia se torna cada vez mais intensa e mais definida. 
                    Agora, tudo se transforma em caos. Estou sozinho no centro 
                    de um nada cinzento e perturbador e agora sei o que significam 
                    as coisas e também sei que sempre o soube. Estou no 
                    Laager e nada é verdadeiro fora do Laager. Tudo o resto 
                    era uma breve pausa, uma ilusão dos sentidos, um sonho 
                    (...). Este sonho dentro do sonho terminou e o outro sonho 
                    continua, gélido. Uma voz bem conhecida pronuncia uma 
                    única palavra, que não é imperiosa, apenas 
                    breve. É a voz de comando do amanhecer de Auschwitz, 
                    uma palavra estrangeira, temida, esperada: "Wstawách!. 
                    Levanta-te."  
                     
                     
                  Poderá um homem sobreviver 
                    ao facto de ter sobrevivido a Auschwitz?  
                  Rita Levi Montalcini, cientista italiana 
                    e sua velha amiga, foi a primeira a pôr em dúvida 
                    a versão do suicídio, argumentando que Levi 
                    era um químico e que conhecia mil outras maneiras, 
                    menos dramáticas e violentas, de pôr termo à 
                    vida.  
                  Para os seus amigos, os seus admiradores, 
                    os seus leitores em todo o mundo, aceitar a ideia do suicídio 
                    era aceitar que a sua profunda humanidade fora finalmente 
                    vencida pelo mal absoluto, desmentido a mensagem de esperança 
                    que inscrevera na sua obra literária de sobrevivente. 
                     
                  "Escrever é a única 
                    salvação, mas escrever é também 
                    a única impossibilidade", disse Jorge Semprum, 
                    outro escritor-sobrevivente dos campos de extermínio 
                    nazis que só conseguiu testemunhar sobre os anos que 
                    passou em Buchenwaldt em 1994, num livro a que chamou "A 
                    Escrita ou a Vida".  
                  Primo Levi, químico de formação, 
                    judeu italiano nascido em Turim em 1919, que apenas descobriu 
                    o total significado de ser judeu em 1944, terminou o seu testemunho 
                    de 11 meses de permanência em Auschwitz apenas um ano 
                    depois de ter sido libertado.  
                  Não se trata de um livro de ficção. 
                    É apenas uma discrição objectiva, serena, 
                    contida, desprovida de amargura, do dia-a-dia de um prisioneiro 
                    de Auschwitz que se esforça por não esquecer 
                    que é um ser humano. "Se isto é um homem", 
                    publicado pela primeira vez em 1947, depois de ter sido rejeitado 
                    pelas grandes editoras italianas, já foi lido por milhões 
                    de pessoas em quase todas as línguas do mundo.  
                  Não é mais um livro sobre 
                    o Holocausto. É um comovente ensaio sobre a própria 
                    natureza humana. "Lavar o rosto todas as manhãs, 
                    mesmo sem água e sem sabão, é a única 
                    maneira de se manter humano", disse-lhe um velho prisioneiro 
                    judeu que não sobreviveu. Quando tentava ensinar italiano 
                    a um companheiro de campo, a memória longínqua 
                    e dispersa de um passado que tinha deixado de existir, apenas 
                    lhe trazia aos lábios os versos do episódio 
                    de Ulisses do "Inferno" ("Divina Comédia") 
                    de Dante: "O que é um homem? O que é um 
                    homem?"  
                  Depois de "Se isto é um Homem", 
                    Levi não mais deixou de escrever, amarrado à 
                    vida pela escrita, sem nunca deixar de exercer a sua profissão 
                    de químico industrial que, provavelmente, lhe salvou 
                    a vida em Auschwitz. "Imploro ao leitor que não 
                    ande à procura de mensagens. É um termo que 
                    detesto porque me impõe um fato que não é 
                    meu e que pertence a um tipo humano do qual desconfio; o profeta, 
                    o adivinho, o vidente. Não sou nada disto. Sou um homem 
                    normal com uma boa memória que caiu num turbilhão 
                    e saiu dele mais por sorte do que por virtude, e que, desde 
                    esse tempo, manteve uma certa curiosidade sobre os pequenos 
                    e grandes turbilhões, metafóricos e actuais", 
                    escreveu Levi num das suas últimas obras.  
                  A sobriedade e a profunda humanidade 
                    dos seus escritos fizeram dele um símbolo do triunfo 
                    da razão sobre a barbárie. Por isso, a dúvida 
                    sobre o seu suicídio foi tão insuportável. 
                    Não vale a pena tentar reler a sua obra à luz 
                    do seu acto final. Basta lê-la e nunca mais esquecer. 
                     
                  É por essa razão que o 
                    PÚBLICO se orgulha de publicar "Se isto é 
                    um homem" na sua Colecção Mil Folhas. Porque 
                    não é mais um simples relato do Holocausto; 
                    é um acto de fé na natureza humana.   
                      
                   
                      
                   
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